As
nossas vidas seguiram rotas que não estavam no horizonte. Com maior ou menor
confinamento, consoante a responsabilidade cívica individual, ninguém escapou
ao impacto da “bomba detonada” em Wuhan.
A
vida, na minha aldeia, sofreu sobressaltos. Porém, os hábitos diários ajudaram
a superá-los. E, assim, registo uma manhã de um dos dias de confinamento.
Acordo
e começo a dar pequenos passos, para que a circulação sanguínea atice os
músculos. A minha voz é lenta e sai aos solavancos, como um comboio a vapor
alimentado a carvão. Esforço-me e consigo juntar quatro sílabas, para convocar
a minha mulher: informei-a de que tenciono regar o relvado, durante o dia.
O
corpo já não está entorpecido. Dirijo-me ao exterior da casa. Anoto: vento
fraco do quadrante norte, com 24 graus de temperatura. A elevada humidade
relativa do ar interessa-me pelo aumento da probabilidade de aparecimento e
crescimento de fungos, nas proximidades, mas, por outro lado, desassossega-me,
porque a pele perde eficácia em transpirar.
Sigo
para a cozinha. O corpo pede uma bebida refrescante. No entanto, é derrotado
pela tentação de uma chávena de leite quente, que terá o acompanhamento de um
pão com manteiga. De realçar que, sete horas antes (enquanto via a série
“Chernobyl”), o padeiro tinha pendurado um saco, com meia dúzia de pães, na
maçaneta dourada da porta de entrada em alumínio.
Vou
para o pomar. Já com grande vigor, começo a folhear o livro “Até ao Fim da
Terra”, de David Grossman. No preciso momento em que releio a frase “(…) trauteando inconscientemente as
palavras ao ritmo lento e tenso das pulsações que vinham do canto do quarto
(…)”, o cão Saltitão roça na minha perna esquerda e, obedecendo ao seu fiel
olfacto, começa a cavar a terra a um metro de mim. Era uma toupeira. Para
desespero do predador, e dos agricultores e jardineiros da aldeia, o mamífero
foi hábil e voltou à vida no subsolo, escavando galerias.
Para
ajudar à festa, o cão Rocky aparece com uma blusa que arrancou do estendal. Com
tudo isto, onde destaco a visão dolorosa sobre o focinho longo e flexível da
toupeira, vem-me à memória a obra “O Grito”, de Edvard Munch.
Avanço
para a varanda, e encontro um cenário idílico: dois melros sobrevoam as plantas
de produção de kiwis e vão pousar debaixo das folhas de uma couve-galega.
Olho,
ainda, para o caminho público frontal e não vejo qualquer movimento humano
sobre o rachão, ao contrário do que acontece no eido, com a vida animal.
A
12 metros de distância, com a ajuda da Benedita, que foi quem escolheu os nomes
para os animais, conseguimos identificar alguns. O coelho Carlos come erva
fresca. A galinha Penélope acabou de cacarejar e começou a comer pequenas
pedras. O galo Drac exibe as suas penas brilhantes, no pescoço, asas e costas
(talvez desejasse ser pavão), desconhecendo se faz, também, planos para o
futuro. A gata Estrelinha está insatisfeita e foge do eido. O gato Peúgas leva
na boca o resultado de uma boa caçada: um pequeno mamífero pertencente à ordem
dos roedores.
Ufa!
Chegou a hora de ver se posso ser útil, na preparação do almoço.
É
o ritmo de uma manhã de confinamento, na aldeia do Mosteiro, concelho de Vieira
do Minho, onde me sinto como o António Gedeão: “Minha aldeia é todo o mundo”.
Artigo de opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (13/06/2020).