segunda-feira, 22 de junho de 2020

MANHÃ DE CONFINAMENTO NA ALDEIA DO MOSTEIRO

As nossas vidas seguiram rotas que não estavam no horizonte. Com maior ou menor confinamento, consoante a responsabilidade cívica individual, ninguém escapou ao impacto da “bomba detonada” em Wuhan.
A vida, na minha aldeia, sofreu sobressaltos. Porém, os hábitos diários ajudaram a superá-los. E, assim, registo uma manhã de um dos dias de confinamento.
Acordo e começo a dar pequenos passos, para que a circulação sanguínea atice os músculos. A minha voz é lenta e sai aos solavancos, como um comboio a vapor alimentado a carvão. Esforço-me e consigo juntar quatro sílabas, para convocar a minha mulher: informei-a de que tenciono regar o relvado, durante o dia.
O corpo já não está entorpecido. Dirijo-me ao exterior da casa. Anoto: vento fraco do quadrante norte, com 24 graus de temperatura. A elevada humidade relativa do ar interessa-me pelo aumento da probabilidade de aparecimento e crescimento de fungos, nas proximidades, mas, por outro lado, desassossega-me, porque a pele perde eficácia em transpirar.
Sigo para a cozinha. O corpo pede uma bebida refrescante. No entanto, é derrotado pela tentação de uma chávena de leite quente, que terá o acompanhamento de um pão com manteiga. De realçar que, sete horas antes (enquanto via a série “Chernobyl”), o padeiro tinha pendurado um saco, com meia dúzia de pães, na maçaneta dourada da porta de entrada em alumínio.
Vou para o pomar. Já com grande vigor, começo a folhear o livro “Até ao Fim da Terra”, de David Grossman. No preciso momento em que releio a frase “(…) trauteando inconscientemente as palavras ao ritmo lento e tenso das pulsações que vinham do canto do quarto (…)”, o cão Saltitão roça na minha perna esquerda e, obedecendo ao seu fiel olfacto, começa a cavar a terra a um metro de mim. Era uma toupeira. Para desespero do predador, e dos agricultores e jardineiros da aldeia, o mamífero foi hábil e voltou à vida no subsolo, escavando galerias.
Para ajudar à festa, o cão Rocky aparece com uma blusa que arrancou do estendal. Com tudo isto, onde destaco a visão dolorosa sobre o focinho longo e flexível da toupeira, vem-me à memória a obra “O Grito”, de Edvard Munch.
Avanço para a varanda, e encontro um cenário idílico: dois melros sobrevoam as plantas de produção de kiwis e vão pousar debaixo das folhas de uma couve-galega.
Olho, ainda, para o caminho público frontal e não vejo qualquer movimento humano sobre o rachão, ao contrário do que acontece no eido, com a vida animal.
A 12 metros de distância, com a ajuda da Benedita, que foi quem escolheu os nomes para os animais, conseguimos identificar alguns. O coelho Carlos come erva fresca. A galinha Penélope acabou de cacarejar e começou a comer pequenas pedras. O galo Drac exibe as suas penas brilhantes, no pescoço, asas e costas (talvez desejasse ser pavão), desconhecendo se faz, também, planos para o futuro. A gata Estrelinha está insatisfeita e foge do eido. O gato Peúgas leva na boca o resultado de uma boa caçada: um pequeno mamífero pertencente à ordem dos roedores.
Ufa! Chegou a hora de ver se posso ser útil, na preparação do almoço.
É o ritmo de uma manhã de confinamento, na aldeia do Mosteiro, concelho de Vieira do Minho, onde me sinto como o António Gedeão: “Minha aldeia é todo o mundo”.

Artigo de opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (13/06/2020).