segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

"NÃO ME DÓI NADA..."

O valor da música atravessa gerações, com marca nas pessoas centenárias. A música dá um empurrão no sorriso e relaxa nos momentos de aflição. Serve, também, de refúgio.

Palmira Simas Santos (nascida a 28 de Março de 1919) mergulhou na música, durante a infância, na Ilha do Pico. Acompanhou-a até à Ilha das Flores, onde viveu a juventude. É uma paixão que sobreviveu à agitação das ondas do oceano Atlântico, chegando a Vieira do Minho.

Por cá, a Palmirinha debita provérbios, como poucos, e eleva músicas tradicionais dos Açores, sempre com a preocupação de que transmitam a mensagem de “uma verdade pura”, como:

 

Ó Pico, rocha tão alta, / Donde o penedo caiu: / Ninguém diga o que não sabe, / Nem afirme o que não viu.

 

Num mundo rural, a vida na agricultura pode levar a mãos secas e gretadas, mas a sabedoria e a educação não sofrem abanões.

A Palmirinha fez-nos chegar preciosidades do seu avô Manuel João dos Santos, um autodidata que chegou a professor, oficial de registo e escrivão da Câmara Municipal das Lajes do Pico. Mais: o seu avô, numa ida ao Tribunal Judicial da Comarca de São Roque do Pico, disse ao juiz que era agricultor. Depois de o ouvir, o juiz duvidou da sua profissão. Com humildade, Manuel dos Santos disse: “Não menti, veja as minhas mãos. Sou agricultor”. Ao que o juiz respondeu: “Tem cultura de um letrado embora com mãos de agricultor”.

Os momentos marcantes das pessoas centenárias envolvem quase sempre o casamento. O amor de João de Araújo Costa (nascido a 30 de Setembro de 1920) pela sua mulher, Joaquina da Trindade Barroso, continua presente. O dia mais feliz foi quando casou; o mais triste quando a companheira de uma vida foi de encontro ao Pai. Um haitiano disse que, quando tudo se desmorona, o que resta é a cultura. João Costa vira-se para a poesia, mas a dor não pisa o pedal do travão.

Hoje em dia, João Costa acha que, “a vida é horrível porque parece que estamos num baile de máscaras”, no entanto, é compensada pelas amizades que sempre valorizou e que o fazem acreditar que é uma das lições mais importantes que aprendeu.

A vida de José António Gonçalves (nascido a 6 de Maio de 1919) foi dedicada a “cuidar dos filhos e a trabalhar na terra”, desejando, em tempos de pandemia, a maior sorte para os seus descendentes. Realmente, “as coisas boas acabam num instante, isto nunca mais acaba”.

Sabendo que há pessoas que, quando têm um martelo na mão, procuram logo os pregos, José Gonçalves lembra-se de um episódio que aconteceu numa eleição, onde a sua preferência não constava no boletim de voto que lhe foi entregue.

As viagens marcam as suas vidas. Conheceram outros países, com idas obrigatórias à praia. O mundo é grande, mas o seu conhecimento está a um pequeno passo, como a viagem a Itália que perdura na memória de José Gonçalves, não sendo abandonada com o avançar da idade.

E, agora, avança a sua fé. “Graças a Deus, fui feliz em tudo”.  Vejo-lhe uma saúde de ferro que embeleza a vida, gerando, por vezes, um misto de sensações: “Não me dói nada... morre tudo... o tempo já é muito”.

Todos eles pedem que os jovens respeitem os mais velhos.

Ouvi os centenários vieirenses e enriqueci a minha vida. A missão passa por levar, até todos, pequenos pedaços da pessoa idosa. Com outros protagonistas, a minha vontade é continuar.

Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (2/12/2020).

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

“COMÍAMOS SÓ PÃO E SOPA, MAS ÉRAMOS MUITO FELIZES"


 Em tempos de pandemia, quando grassa a dor, devemos celebrar a vida: homenagear os centenários vieirenses. Um trabalho que escava o passado, resgatando memórias, e destapa o futuro, vislumbrando a esperança.
Conversas com seis pessoas centenárias enriquecem a nossa vida. São pessoas com história e sabedoria. Os seus momentos inesquecíveis são enriquecedores e as expressões são contagiantes. Tudo isto merece ser elevado, e chegar a todos.
Do Mosteiro a Ruivães, passando pela sede de concelho, Agra e Salamonde, saltam histórias que marcaram famílias e abarcaram a vida das próprias comunidades.
Recuar mais de 100 anos é um exercício exigente. A Gripe Espanhola causou, possivelmente, um maior número de vítimas mortais, do que o conflito militar mais mortal da história - a Segunda Guerra Mundial, e atingiu uma das nossas comunidades: Agra. As pessoas ouviam, naquele tempo, o sino tocar e comentavam: “Aí vai mais um”.
De imediato, agarravam-se à fé e faziam promessas. A Arminda Fernandes (que nasceu a 23 de Novembro de 1920) lembra-se de lhe contarem que o seu avô, José Francisco Fernandes, prometeu oferecer, à Nossa Senhora do Porto de Ave, uma vaca se, na família, não falecesse ninguém infectado pela Gripe Espanhola. Felizmente, as graças foram concedidas, e o animal lá partiu.
Por vezes, é fácil olhar para o passado, como acontece quando o olhar embate na Feira da Ladra. Palpitam, imediatamente, episódios fervilhantes da vida em Vieira do Minho.
O carrossel dava ritmo à Feira, relaxando aqueles que não chegavam a conhecer os trabalhos realizados nos teares de Agra, quando eram todos vendidos na Feira de S. Miguel, em Cabeceiras de Basto.
A vontade da população em participar na Feira é tão grande, que proporciona truques engenhosos. Anotem este ocorrido em Agra: a Constança, a Ana e o António (irmãos da Arminda) adiantaram uma hora o relógio de sala, que ainda existe, mas já não dá horas, para o pai, Manuel Fernandes, sair de casa mais cedo para Calvos (onde ia apanhar a “carreira” para Cabeceiras de Basto). Mal o pai saiu, os irmãos foram a correr até Celeirô, e sempre conseguiram apanhar a “carreira” que ia para Vieira do Minho, onde um transmontano já estava a marcar pontos.
Falta realçar que, em grandiosos eventos, encontramos excepcionais animadores. Em meados de 1940, a Feira teve um especial: Pistolas (morava em Caniçó, lugar da freguesia de Salto, concelho de Montalegre). Animava a Feira, tocando concertina e cantando, com os altifalantes a fazerem o resto do trabalho.
Se reflectir de maneira superficial, posso imaginar uma vida perfeita, quando a Feira da Ladra casa com a corrida ao Ouro Negro. 
Porém, nesse período, a vida em Vieira do Minho não foi um mar de rosas, para muitos. Que o diga a pessoa que, neste momento, é a mais velha do concelho: Maria de Jesus Ferreira (nascida a 17 de Janeiro de 1919). Morou em Campos e a sua proximidade à aldeia das Minas da Borralha (pertencente à freguesia de Salto), onde abundava um precioso minério - o volfrâmio, impulsionou-a a registar as consequências da descoberta de uma riqueza: oportunidades, mas, igualmente, invejas, ilusões e sofrimentos. Para Maria Ferreira, são sofrimentos ao nível do “roubo” do milho de que foi alvo, contudo, inferiores à dor de ver os filhos emigrar.
O século passado esteve manchado de conflitos. Maria Gomes (que nasceu a 19 de Junho de 1920) sente uma enorme dor de ver o filho partir, para a Guiné-Bissau, onde foi combater na Guerra Colonial. Aerogramas e mais aerogramas. Um meio de comunicação, relativamente, eficaz que agarrou o sonho de voltar a vê-lo. A dor só desapareceu, quando o filho tornou-se visível.
Foram tempos difíceis. No entanto, a felicidade não virava costas, como anotou Maria Gomes: “Íamos descalços, para a escola, com o vestido rotinho. Comíamos só pão e sopa, mas éramos muito felizes”.
Continuarei, num próximo artigo, com pinceladas enriquecedoras de vivências de mais três centenários vieirenses.

 

Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (1/11/2020).

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

ATÉ SEMPRE, AMIGO!

Fui rasteirado e tenho de alterar o plano. No dia 25 de Julho do presente ano, perspectivava-se uma bela manhã de verão, com momentos de satisfação na prática desportiva. A reunião de sensações positivas não foi suficiente para bloquear o que veio a acontecer.

 

[Um dia, no regresso a casa após as aulas, passei em frente a uma ourivesaria. Um relógio de pulso italiano estava na montra, e a subtileza do movimento dos ponteiros fez-me travar o passo. Admirei a elegância do conjunto, onde se destacava uma barra horizontal cor-de-laranja, no mostrador. Cortejei o relógio, até recebê-lo, no dia de Natal. Foi o meu primeiro relógio de ponteiros e tenho-o guardado. Sabia que ia ficar comigo, para sempre.]

 

Um amigo veio ao meu encontro, no Mosteiro, e, às 7h30, começamos a pedalar em direcção às Terras de Basto. A motivação pela volta que íamos fazer não impediu uma paragem, no Arco de Baúlhe, devido a dúvidas no trajecto a seguir. Aqui, também, sentimos uma fraqueza que não física.

 

[Um dia, já perto de se iniciar a Quadra Natalícia, realizou-se um jantar de amigos num “bunker” vieirense. Resultado desse encontro: nasceu a Associação CAVA – Clube Amigos de Vieira. Avançamos com coragem, impulsionados pela força do nosso padrinho, que foi aquele que nos acolheu e apoiou. Respeito mútuo, felicidade crescente.]

 

Debaixo de um sol abrasador, passamos em Atei, onde as vinhas ladeiam a rota. Procuro esquecer o péssimo estado da estrada e recordar que alguns vinhos verdes, desta região, já foram convocados para exigentes embates gastronómicos. De que vale recordar isto? Vale muito.

 

[Um dia, num domingo de Outono, estava a acabar de almoçar e um amigo liga, por volta das 14h, a perguntar se queria ir ver um jogo de futebol, em Macedo de Cavaleiros, onde o Vieira Sport Clube iria defrontar a equipa local. Um detalhe: o jogo começava às 15h. Chegamos no fim da primeira parte, não sem antes pararmos, obviamente, no Mosteiro para beber um café. A nossa equipa perdeu, mas, felizmente, as alegrias foram superiores às tristezas. Mais um fascínio que nos uniu tantas vezes, levando-nos a descobrir, principalmente, a região de Trás-os-Montes e Alto Douro.]

 

Chegou o momento de começarmos a subida de 8 quilómetros e 200 metros, com uma pendente média de 7,4%, até ao Santuário de Nossa Senhora da Graça. As pernas não fraquejaram e levaram-nos ao topo do Monte Farinha. Já os corações vão desmoronar-se, daqui a alguns minutos.

 

[Um dia, surgiu a curiosidade de ver um concerto de Roger Waters. Os nossos caminhos uniram-se, novamente. Um outro amigo acompanhou-nos e arrancamos em direcção a Lisboa. Uma paragem na região da Anadia, na face da Estrada Nacional 1, e, desde daí, uma maravilha gastronómica levou-nos ao início do concerto e agarrou-me até hoje. O muro de Roger Waters caiu; o nosso solidificou-se.]

 

No santuário, aconteceram momentos solenes, com a troca de impressões com peregrinos cabeceirenses. Começamos, depois, a descer, de regresso a casa. Enfrentamos vento forte que nos levou a ter atenção redobrada nas curvas em formato de gancho. A descida termina e olho para o telemóvel: uma chamada perdida de um amigo de infância. Não queria ouvir o que ele tinha para me dizer.

 

[Um dia, decorreu um jogo no mítico Estádio de Anfield, com visualização num espaço subterrâneo vieirense, que justificou uma refeição especial, enquanto a bola rolou. O Benfica eliminou o campeão europeu em título e a loucura levou-nos a muitos abraços e a alguns choros. O momento verdadeiramente alto foi com o corpo em forma de “U” invertido, imaginando castanholas nas mãos, um amigo cantou uma música popular da língua de Cervantes. Mais tarde, também aqui, festejamos o título europeu da selecção portuguesa de futebol.]

 

Devolvi a chamada. A satisfação de termos atingido o topo seria derrotada pela notícia que ia chegar. Ele disse-me: “O nosso amigo partiu...”. A fé faz-nos mover, mas não tem força suficiente para travar aquilo que não queremos que aconteça. Informo o meu companheiro de aventura, que o tratava carinhosamente por “padrinho”. Fizemos o resto do caminho a recordar os momentos inesquecíveis que vivemos. Um dos meus grandes amigos foi ao encontro do Pai. Tantas histórias ficaram por contar, mas o resto fica, para sempre, entre nós. Nutria por ele um enorme respeito e ele com todos aqueles com quem se cruzou. Vamos perpetuar a sua memória, recordando a singela, mas sentida homenagem realizada, há poucos anos.

 

Uma semana antes de partires, fizeste-me um pedido. Eu cumpri sem saber que, esse, seria o teu último pedido e que a nossa última conversa ocorreria poucos minutos depois…

 

Até sempre, Leo!


Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (4/10/2020).

domingo, 16 de agosto de 2020

UMA AVENTURA CHAMADA ALENTEJO

Ao acompanhar o meu cunhado e amigo Victor Fernandes, que por motivos profissionais teve de se deslocar ao interior do Alentejo, proporcionou-se uma viagem que, há muito, ansiava.

O luar, numa noite estrelada, abrilhantou a nossa entrada no Alentejo e, em Ponte de Sor, tivemos uma gloriosa recepção.

Uma lebre, fazendo jus à fama de boa corredora, ziguezagueou, durante vários minutos, na frente do automóvel até encostar, fatigada, a um sobreiro. A nossa Árvore Nacional continuou a ladear a estrada.

Chegamos a Avis. Antes de pegarmos nas malas, tivemos duas certezas em relação aos próximos dias: seremos vigiados por magníficos castelos e as planícies douradas emoldurarão a paisagem, pinceladas de oliveiras, sobreiros e azinheiras.

Serve como despertador o calor que sacode o corpo. Acordar no Alentejo, no mês de Junho, é esperar um clima quente e seco, com 35 graus de temperatura, ou mais, ao longo do dia.

O Victor teve de levar o computador portátil e avançou com as aulas. Eu levei a bicicleta; enchi o bidão com isotónico e pedalei até ao Castelo de Evoramonte.

Depois de subir a difícil Serra d’Ossa, onde os quatro torreões cilíndricos saltam logo à vista, entro na Porta do Sol (uma das quatro portas que rasgam as muralhas do Castelo) com ritmo cardíaco de 182 batimentos, por minuto.

Tento controlar a respiração para, logo depois, sorver história dos séculos XII e XIX: por volta de 1160, depois de oferecer a sua habilidade e coragem a D. Afonso Henriques, o aventureiro Geraldo sem Pavor liderou a conquista aos mouros desta e de outras terras alentejanas e, no dia 26 de Maio de 1834, a Convenção de Evoramonte finalizou a guerra civil que sangrou Portugal, opondo absolutistas a liberais.

Antes de regressar a Avis, deleito as incríveis vistas panorâmicas, onde o encanto não tem fim.

É a hora do almoço, o momento de continuar a repor os sais minerais que perdi na actividade física.

Os maravilhosos produtos da região rechearam a mesa. O queijo de ovelha curado chegou com o Victor de Sousel. O azeite virgem extra joga em casa, é de Avis. O pão, com côdea rija e miolo compacto, veio de Alter do Chão e será uma companhia, nesta, e nas próximas refeições principais. Faltou o vinho. A Amália Rodrigues já tinha cantado: “Numa casa portuguesa fica bem / Pão e vinho sobre a mesa”.

Com os corpos revigorados, o néctar dos deuses foi saboreado, na parte da tarde.   

Em duas quintas, uma localizada em Sousel e outra em Estremoz, tropeçamos em vinhos sedutores, feitos com a mesma paixão que encontrei, há anos, no Douro. Brindamos ao Alentejo e batemos palmas às castas Antão Vaz e Alicante Bouschet. Uma garrafa foi para a bagageira, objectivando abri-la no Inverno, quando umas Couves com Feijões repousarem na mesa. 

Já no centro de Estremoz, surge a oportunidade de comermos o doce Pão de Rala. Trinco esta maravilha e imagino-me no século XVI, a ver o alvoroço que surgiu, na cozinha do Convento de Santa Helena do Monte Calvário, em Évora, com a visita anunciada de D. Sebastião. Não havia muito para lhe dar e lá teve que se servir do que havia: “pão ralo”, azeitonas e água.

Sua Majestade ficou surpreendentemente agradada, não negando uma evidência, e, depois, ajudou o convento.

A felicidade das irmãs foi tanta que criaram o Pão de Rala (um “milagre” com ovos, amêndoa e chila, acompanhado com “azeitonas” de maçapão e escurecidas com cacau). A felicidade perdurou e, passados cerca de 450 anos, atingiu dois minhotos!

Continuamos em Estremoz, a “cidade branca”. Casario branco e forte produção de mármore. Com a boca ainda adocicada, anoto a altura da Torre de Menagem: 27 metros. Construída em mármore, é de uma beleza estonteante.

Olhamos para as terras que nos circundam.

Há uma ligação íntima à história de Portugal. Aqui perto, as terras serviram de palco a uma batalha decisiva para a independência do nosso país, a Batalha de Montes Claros. Tal êxito também contou com a bravura de três mil e quinhentos homens transmontanos que deve ter baralhado as contas de Marquês de Caracena.

Estremoz respira, igualmente, amor. Aqui faleceu a Rainha Santa Isabel. Tinha um coração do tamanho de Portugal e, com ou sem rosas, foi amada pelo povo.

A viagem pelo Alentejo ainda não terminou. Um artigo posterior continuará com os registos de um território que orgulha Portugal.


Artigo de opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (12/7/2020).

segunda-feira, 22 de junho de 2020

MANHÃ DE CONFINAMENTO NA ALDEIA DO MOSTEIRO

As nossas vidas seguiram rotas que não estavam no horizonte. Com maior ou menor confinamento, consoante a responsabilidade cívica individual, ninguém escapou ao impacto da “bomba detonada” em Wuhan.
A vida, na minha aldeia, sofreu sobressaltos. Porém, os hábitos diários ajudaram a superá-los. E, assim, registo uma manhã de um dos dias de confinamento.
Acordo e começo a dar pequenos passos, para que a circulação sanguínea atice os músculos. A minha voz é lenta e sai aos solavancos, como um comboio a vapor alimentado a carvão. Esforço-me e consigo juntar quatro sílabas, para convocar a minha mulher: informei-a de que tenciono regar o relvado, durante o dia.
O corpo já não está entorpecido. Dirijo-me ao exterior da casa. Anoto: vento fraco do quadrante norte, com 24 graus de temperatura. A elevada humidade relativa do ar interessa-me pelo aumento da probabilidade de aparecimento e crescimento de fungos, nas proximidades, mas, por outro lado, desassossega-me, porque a pele perde eficácia em transpirar.
Sigo para a cozinha. O corpo pede uma bebida refrescante. No entanto, é derrotado pela tentação de uma chávena de leite quente, que terá o acompanhamento de um pão com manteiga. De realçar que, sete horas antes (enquanto via a série “Chernobyl”), o padeiro tinha pendurado um saco, com meia dúzia de pães, na maçaneta dourada da porta de entrada em alumínio.
Vou para o pomar. Já com grande vigor, começo a folhear o livro “Até ao Fim da Terra”, de David Grossman. No preciso momento em que releio a frase “(…) trauteando inconscientemente as palavras ao ritmo lento e tenso das pulsações que vinham do canto do quarto (…)”, o cão Saltitão roça na minha perna esquerda e, obedecendo ao seu fiel olfacto, começa a cavar a terra a um metro de mim. Era uma toupeira. Para desespero do predador, e dos agricultores e jardineiros da aldeia, o mamífero foi hábil e voltou à vida no subsolo, escavando galerias.
Para ajudar à festa, o cão Rocky aparece com uma blusa que arrancou do estendal. Com tudo isto, onde destaco a visão dolorosa sobre o focinho longo e flexível da toupeira, vem-me à memória a obra “O Grito”, de Edvard Munch.
Avanço para a varanda, e encontro um cenário idílico: dois melros sobrevoam as plantas de produção de kiwis e vão pousar debaixo das folhas de uma couve-galega.
Olho, ainda, para o caminho público frontal e não vejo qualquer movimento humano sobre o rachão, ao contrário do que acontece no eido, com a vida animal.
A 12 metros de distância, com a ajuda da Benedita, que foi quem escolheu os nomes para os animais, conseguimos identificar alguns. O coelho Carlos come erva fresca. A galinha Penélope acabou de cacarejar e começou a comer pequenas pedras. O galo Drac exibe as suas penas brilhantes, no pescoço, asas e costas (talvez desejasse ser pavão), desconhecendo se faz, também, planos para o futuro. A gata Estrelinha está insatisfeita e foge do eido. O gato Peúgas leva na boca o resultado de uma boa caçada: um pequeno mamífero pertencente à ordem dos roedores.
Ufa! Chegou a hora de ver se posso ser útil, na preparação do almoço.
É o ritmo de uma manhã de confinamento, na aldeia do Mosteiro, concelho de Vieira do Minho, onde me sinto como o António Gedeão: “Minha aldeia é todo o mundo”.

Artigo de opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (13/06/2020).

terça-feira, 12 de maio de 2020

PORMENORES DE UM ABRIL DIFERENTE... NA HISTÓRICA CIDADE DE AMARANTE



Num dia ameno do mês de Abril de 2020, tive de ir ao centro da cidade de Amarante. Uma terra que aprendi a amar, de há 14 anos a esta parte; uma terra que estima as suas gentes; preserva a sua identidade e eleva a cultura.
A cidade estava paralisada.
Parei na Praça da República. Não ouvi uma palavra, na língua de Shakespeare, a esvoaçar sobre o rio Tâmega e sob a Ponte de São Gonçalo. Não ouvi o arrulhar do pombo que estava na Varanda dos Reis da Igreja de São Gonçalo. Não chegou o aroma dos Doces Conventuais, da confeitaria localizada a poucos metros.
Olho para o rio Tâmega e anoto a sua forma descontraída. Ele que, por vezes, “revolta-se”, inunda a zona histórica e desespera comerciantes. Da Serra de San Mamede ao rio Douro, uma das maiores belezas que o rio toca, durante o seu percurso, é a Ponte de São Gonçalo.
Nesta ponte, projectada por Carlos Amarante, desenrolaram-se, há cerca de 211 anos, combates viscerais. As tropas napoleónicas conseguiram conquistar a ponte (desconheço se os quatro varandins semicirculares foram do seu encanto), mas não aguentaram muito tempo. A astúcia do General Silveira e a bravura dos seus soldados, alguns sem armas de fogo, reforçam a “tese” de que, em relação às forças, nem sempre ganham os que estão em maior número e melhor armados.
Tantos anos passaram, desde os combates, e visualizamos, ainda, marcas de bala de canhão e mosquete na fachada da Igreja de São Gonçalo. A curiosidade sobre São Gonçalo palpita. Para a Igreja Católica, é beato. Para o povo, é santo. Santo António casa as novas. São Gonçalo recebe as “encalhadas”.
Vou adocicar. Venham as lérias e foguetes. Amêndoas e açúcar escuro, para as lérias. Amêndoas, ovos e folhas de hóstia, para os foguetes. São Doces Conventuais imortalizados pelas irmãs clarissas, do Mosteiro de Santa Clara.
As invasões francesas voltam a ter destaque. O fogo que atearam ao Mosteiro de Santa Clara, no dia 18 de Abril de 1809, provocou danos materiais, mas o património imaterial manteve-se intocável. O respeito; a tradição; o património e a herança deram as mãos. As irmãs tiveram a dignidade de partilhar os saberes com algumas famílias da região, que continuaram o legado.
Regresso ao mês de Abril de 2020. Quando ia embora, estava prestes a entrar no meu automóvel e deparo-me com um detalhe que me faz travar o passo. Vejo, na estátua de Teixeira de Pascoaes, localizada no Jardim da Alameda, uma máscara de pano sobre a boca e nariz do grande homem das letras. Admirei a originalidade e profundidade do detalhe, durante alguns segundos e, após isso, fotografei-o.
A minha memória guardou a imagem impactante e o seu significado, sobre os tempos que correm. É algo que me faz pensar. A máscara continuará a fazer parte do nosso dia-a-dia e, tenho a certeza, o escultor da estátua, António Duarte, aplaudiria este acréscimo.
Em “Verbo Escuro”, Pascoaes parece pressentir o desafio das próximas gerações, quando escreve: “Nascer é por a máscara”.
Sempre que vou trabalhar, passo a 200 metros da Casa de Pascoaes, onde, aí, o poeta abraçava o Tâmega e o Marão e recebia Raul Brandão; José Régio; Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros.  
Amarante honra a nossa literatura e as artes. É uma terra que trabalha a cultura; que lança sementes; rega e aduba. É, também, a terra de Amadeo de Souza-Cardoso e Agustina Bessa-Luís.

Comentário na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (6/5/2020). 

quinta-feira, 16 de abril de 2020

OS MEUS AVÓS E A PANDEMIA


Quando os meus avós nasceram, o telefone, a lâmpada incandescente e o automóvel moderno tinham sido, recentemente, criados. Razões para sorrir?
Pouco tempo depois de nascerem, três dos meus avós (a avó Virgínia só nasceu no ano de 1921) têm conhecimento que Hermano Neves, do jornal “A Capital”, parte para França, sendo o primeiro repórter português enviado para a Primeira Guerra Mundial.
Posteriormente, os quatro são informados, no dia 15 de Maio de 1945, por Manuel Rodrigues, que escreveu no jornal “Diário de Notícias”, o seguinte: “Existe exagero nos relatos que têm sido publicados a respeito dos campos de concentração alemães? Pelo que diz respeito a Dachau posso afirmar que não”.
Passaram os conflitos mundiais e o receio era que começasse uma guerra nuclear.
A somar a tudo isto, os meus avós, e os demais portugueses, tiveram de lutar, duramente, contra a ditadura salazarista. Momento marcante: desenrolava-se a Segunda Guerra Mundial e Salazar decretou o racionamento de alguns bens alimentares, principalmente, por causa da escassez de alimentos.
Nesta fase da vida, os meus avós recebiam senhas do Regedor para comprarem, a preços tabelados, algum milho, arroz, azeite, açúcar, entre outros.
Se é verdade que, por norma, a broa de milho estava na mesa todos os dias, também é verdade que as refeições eram poucas, reduzidas e não variavam. De segunda-feira a sábado, comiam sopa com couves e feijões. Aos domingos, a história era outra – feijões com arroz.
Racionar era a palavra de ordem. A fome e a miséria proliferavam. Salazar bem tinha dito: “Livro-vos da guerra, mas não sei se vos livro da fome”. E só não foi pior porque continuamos a exportar, por exemplo, latas de sardinhas. Quem as apreciava? Hitler. No seu “bunker”, encontraram três desses recipientes portugueses.
Quem passou pelo racionamento, tem, naturalmente, receio que volte a acontecer.
Cerca de 6 meses depois de partir Salazar, a avó Deolinda é a primeira dos meus quatro avós a ir ao encontro do Pai. Quinze anos depois, falece a avó Virgínia e, num território de contrastes, a alegria do mundo, com a queda do Muro de Berlim, adversava com a dor na minha família: num espaço de três meses, partem o avô Manuel e o avô Silvino.
Nessa altura, os meus avós nem sonhavam que, muitos anos depois, um inimigo epidémico invisível pudesse obrigar ao adiamento de uma edição dos Jogos Olímpicos. Agora, os seus filhos, netos, bisnetos e trinetos (alguns, fora de Portugal) deparam-se com o maior desafio das últimas décadas.
O mundo não estava preparado para enfrentar um inimigo como a COVID-19, com estas características, e desvalorizou quem o avisasse. Há 5 anos, Bill Gates disse: “Se alguma coisa matar mais de 10 milhões de pessoas, nas próximas décadas, é muito mais provável dever-se a um vírus altamente contagioso do que a uma guerra. Não mísseis, mas micróbios”. O surto do vírus Ébola na África Ocidental, em 2014, foi um forte aviso. No entanto, pouco ou nada foi feito, desde aí.
Neste momento, os Sistemas de Saúde de alguns países mais ricos do mundo estão à beira da ruptura.
É uma corrida contra o tempo. Por um lado, a indústria farmacêutica trabalha 24 horas por dia, para o fabrico de uma vacina preventiva para a COVID-19. Uma vacina pode demorar oito a dez anos a estar pronta, mas aguardamos um milagre.
Por outro lado, temos pessoas como Lila. Ela, na “A Amiga Genial”, de Elena Ferrante, “destruía equilíbrios só para ver de que outro modo podia recompô-los”, e, nestes momentos críticos, também há quem o faça, sem qualquer desfaçatez.
No dia 2 de Março de 2020, a pandemia atingiu Portugal e outra cantiga cantou. Passaram alguns dias e o estado de emergência foi declarado, pela primeira vez, em 45 anos.
Uma palavra de força e esperança para os que estão na linha da frente, na luta contra a pandemia. São, entre outros, os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares), forças de segurança e bombeiros.
Para terminar, realço a minha esperança e confiança no nosso Serviço Nacional de Saúde. Tem fraquezas? Sim, tem várias (um exemplo: temos de baixar o tempo de espera para tratamentos de cancro), mas, honestamente, acho que temos os melhores profissionais de saúde do mundo.
Saúde para todos!

Comentário na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (11/04/2020). Fotografia: Foto Silva.

terça-feira, 24 de março de 2020

UM NOVO AEROPORTO... SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO!


E tudo começou em 1969.
Posso anotar vários factos marcantes, nesse ano, como Neil Armstrong ter sido o primeiro homem a pisar a Lua, ou ter sido lançado o álbum icónico “Abbey Road” da banda The Beatles, mas vou focar-me numa ocorrência dentro de portas: dois senhores, um chamado Marcello Caetano e outro Américo Tomás, aprovaram a criação do Gabinete do Novo Aeroporto de Lisboa.
É verdade. Por incrível que pareça, o debate sobre este assunto começou há mais de 50 anos. O Diário de Notícias até noticiou, na época, que o aeroporto seria, com 90% de hipóteses, em Rio Frio, e lá receberiam os “gigantes ‘Concorde’”.
Em 1969, já consideravam um “importante problema nacional”.
Estamos em 2020. Rio Frio é alvo de notícia, mas por causa de uma herdade. Os “Concorde” deixaram de voar. Mais 11 homens conseguiram a proeza de pisar a Lua.
Ah! Em homenagem ao nosso fiel amigo, anoto que a construção de um novo aeroporto, na região de Lisboa, ficou em águas de bacalhau.
Uma grande obra pública para começar, no nosso país, passa o cabo dos trabalhos. Os obstáculos surgem, em todo o lado. Uma autêntica novela sem fim à vista. Enredos intrincados. É oportuno: cresci a ver telenovelas latino-americanas. Quem não se recorda da dobragem para português do Brasil? Enquanto frequentava o ensino básico, almocei várias vezes na minha casa. Recordo a Feijoada à Transmontana que a minha mãe confeccionava. Boa combinação: uma garfada de feijão vermelho, chouriço de carne e couve-lombarda e assistia a uma cena da telenovela.
Vários se sentem como Lila, no livro “A Amiga Genial” de Elena Ferrante, quando esteve, possivelmente, “dominada pela urgência de se sentir encerrada numa visão compacta, sem fissuras”.
Aconteceram momentos marcantes, ao longo de tantos anos. O aeroporto já esteve para ficar em 17 locais diferentes. Tantos estudos e anotações! Tempo perdido e dinheiro que voou entre Rio Frio, Tires, Ota, Alcochete…
A construção de um novo aeroporto é urgente! Voltar à estaca zero? Será uma loucura. Os enormes custos que isso também traz. O turismo desespera. Já aterram mais de 31 milhões de passageiros, anualmente, na Portela.
Há pouco tempo, a “troika” varreu para debaixo do tapete a construção de um aeroporto, mas vai ser agora: o Governo de António Costa optou pela solução Portela + Montijo, e a Agência Portuguesa do Ambiente deu luz verde ao novo aeroporto no Montijo. Ou será que não vai ser agora?
Existe uma questão que fez soar, ultimamente, o alarme. Devem-se ter esquecido que a inexistência do parecer favorável de todos os municípios afectados “constitui fundamento para indeferimento”, e vemos autarcas que são contra o aeroporto no Montijo e que sonham com Alcochete.
Sendo no Montijo, há menos custos e a construção é mais rápida? Não vou fazer como o Mário Lino e embrulhar-me em frases tacanhas com a palavra “jamais”. Acredito nos técnicos qualificados que defendem Montijo como a melhor solução.
Chamo, novamente, Lila e vejo-a estreitar os olhos, “como se reduzir os olhos a uma greta lhe permitisse ver de forma mais concentrada”. Vou tentar fazê-lo.
Uma postura arrogante é nefasta. Faz-me cócegas ver o poder central de nariz empinado, perante o poder local, comunicando uma decisão sem acontecer, previamente, um diálogo construtivo (sempre aberto à negociação), entre ambas as partes.
O poder central tem de estar próximo dos autarcas e ouvir a população. Não vou abordar o encerramento do Serviço de Atendimento Permanente (SAP) nocturno dos Centros de Saúde; o encerramento de Tribunais e o encerramento de Repartições de Finanças.
Não sei se está a acontecer um comportamento arrogante, neste processo, só as partes envolvidas o poderão dizer, o que sei é que não se pode querer alterar a lei, quando não dá jeito.
Imperando o bom senso, o Governo e os municípios devem ser elos da mesma corrente, e saber que projectos, de âmbito nacional, não podem ficar presos a caprichos.

Comentário na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (10/03/2020).

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

PARABÉNS, ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE VIEIRA DO MINHO!


A Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vieira do Minho (AHBVVM) chegou aos 80 anos. É uma Associação que aprecio saudar, acarinhar e abraçar.
Eleva-se o sentimento: os bombeiros são os meus heróis de carne-e-osso. Dão as mãos e mostram ao nosso país, que às vezes é perito na desunião, que juntos chegam mais longe.
E, assim, independentemente de estar a caminhar, pedalar ou conduzir, tenho o hábito de levantar o polegar, no sentido de lhes dar ânimo, quando me cruzo com eles. É, acima de tudo, um sinal de respeito que mantenho, mesmo numa situação de aperto (que o digam os bombeiros de Fão).
Uma palavra amiga, também, para todos os que os ladeiam.
A cidadania movimentou-se e a AHBVVM nasceu no dia 12 de Fevereiro de 1940. Tantos acontecimentos gloriosos surgiram desde então.
Em 1941, avança a compra de uma viatura Packard. Do concelho de Miguel Torga, vem um carro de turismo que foi, depois, transformado num pronto-socorro.
Em 1973, enquanto o mundo aplaude o Acordo de Paris para o Fim da Guerra e Restauração da Paz no Vietname, o saudoso Bernardino Cruz, que era o presidente, vê inauguradas as obras de ampliação e remodelação do quartel, localizado na Praça Guilherme de Abreu.
Realço mais quatro momentos que refrescaram e fortaleceram a Associação, nomeadamente, em 1995, os bombeiros passam a ocupar o quartel situado na Praça do Bombeiro Voluntário e, nesse mesmo ano, a Secção de Ruivães entra em funcionamento; na viragem do milénio, o corpo de bombeiros passa a contar com elementos do sexo feminino e, em 2016, é inaugurado o actual quartel.
Focando-me nos acontecimentos duros e impactantes, recordo-me, imediatamente, de um. Em 1996, o bombeiro Valdemar Ramalho faleceu, numa missão de resgate ocorrida na Albufeira do Ermal. Um momento chocante e doloroso que me marcou, quando era criança. A notícia foi, desesperadamente, rápida e aterradora. Uma onda de choque abalou a corporação e chegou, estrondosamente, ao meu lar.
Vivi a poucos metros do quartel localizado na Praça do Bombeiro Voluntário. Um quartel que, agora, está, vergonhosamente, devoluto, indigno para todos aqueles que lá tiveram a sua segunda casa. Para alguns, foi a primeira…
Tantas e tantas vezes acordei, a meio da noite, com a sirene a tocar. Depois, os meus heróis iam cumprir a sua missão e eu voltava a adormecer. Falar de Justino Barros e Armindo Vilaverde é falar de grandes referências dos bombeiros vieirenses. A dedicação e solidariedade é-lhes reconhecida e é de louvar. Prestáveis. Trabalhadores. Valentes. Corajosos. Amigos. Homens firmes e verticais!
Daqui a uns meses, iremos voltar a falar no mesmo: fogos, fogos e fogos. Na maior parte das vezes, têm responsabilidade humana. E os Soldados da Paz, a troco de pouco, ou quase nada, e com equipamentos por vezes deficitários, seguem, prontamente.
Nos oito anos em que fui membro da Assembleia Municipal de Vieira do Minho, nunca esqueci os bombeiros. A vontade de dignificá-los e defendê-los, é entusiasmante.
Até que o baptismo de uma rua, em homenagem a Armindo Vilaverde, fosse realidade, intervim para que tal acontecesse, o mais brevemente possível.
Mais, no dia 1 de Setembro de 2017, despedi-me das reuniões da Assembleia Municipal, dando voz a uma proposta do meu partido que recomendava que o Município assumisse, em conjunto com o Governo, o custo de aquisição de um Veículo Tanque Táctico Urbano (VTTU) para a AHBVVM. A proposta foi aprovada, por unanimidade.
Uma nota torna-se oportuna. Na recta final de 2016, vários vieirenses, próximos à Associação, realçaram a ausência de vontade de vários membros da direcção de assumirem um novo mandato. Assim, estabeleci vários contactos, para preenchermos o vazio directivo que, muito provavelmente, iria acontecer. Uma vez que a direcção optou por recandidatar-se, justificando a recandidatura com fortes e entendíveis razões, optamos por não avançar.
A vida é feita de ciclos e, desde aí, iniciei, nomeadamente, um ciclo numa importante instituição concelhia. Dois e dois são quatro e, neste momento, não estou disponível para liderar uma solução directiva.
Em relação ao futuro, e como referiu um dos maiores vultos da literatura, José Saramago, no ano de 1991: “Há duas palavras que não se podem usar: uma é sempre, outra é nunca”.
Parabéns, Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vieira do Minho!

Comentário na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (10/02/2020). Fotografia: jornal Bombeiros de Portugal.


quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

2019 E A DIGNIDADE HUMANA

2019 foi o ano de Tolentino de Mendonça; Greta Thunberg; Nick Cave; Olga Tokarczuk. Não há dúvida de que se destacam, em áreas distintas. Pensam o mundo. Alertam a sociedade. Vivem o luto. Embrulham-se na política. Movem-se por paixões. Transmitem mensagens. Desafiam quem os ouve; quem os lê.
Quem também nos desafiou, foi uma das pessoas mais ricas do mundo. Há quem prefira terminar o ano com frases que nos abalam e fazem pensar. Aqui, a medalha de ouro vai para Bill Gates, que referiu: “A minha fortuna mostra que não há justiça fiscal”.
Vou avançar! Não iniciei o novo ano a registar os acontecimentos a realizar, mas chegaram reptos, via correio electrónico, no dia 29 de Dezembro do ano que terminou: cheque-prenda de um parque de desportos de aventura.
Um desafio será rejeitado, mesmo tendo recebido apoio emocional (não remunerado) da minha mulher, nos primeiros dias, após a recepção do presente. Nem pensar em prenderem-me ao maior cabo do mundo de descida por gravidade. O motivo é mesmo a acrofobia. Quando estou na varanda de um quinto andar, procuro um objecto que está atrás de mim. Se for um objecto fixo, esforço-me por abraçá-lo; se for um objecto móvel, agarro-o, fecho os olhos e lanço-o.
Assim, ficarei pelo percurso pedestre. Sempre me dei melhor com os pés bem assentes no chão. Avançarei por caminhos que foram calcorreados, em tempos, por Camilo Castelo Branco. Aqui, até poderei travar para admirar, relaxadamente, o Vale do Tâmega e avançar na leitura de “A Amiga Genial”, de Elena Ferrante (o que se revelava difícil ao deslizar por um cabo).
O mais importante é, isso sim, apoiar os tratamentos da Rita, que é a causa solidária que originou um sorteio de rifas e proporcionou a oferta que recebi.
O que me vem, agora, ao pensamento, é o respeito pela dignidade humana.
Recordo o sul-coreano Son. Foi protagonista de dois momentos que marcaram 2019. Chorou, após lance que lesionou adversário e pediu-lhe desculpa, num jogo posterior, nos festejos de um golo da sua autoria. Son mostrou-nos que um golo, que é o êxtase de um jogo de futebol, pode possibilitar, também, um perdão.
Não me sai do pensamento, o respeito pela dignidade humana.
Os portugueses escolheram, na iniciativa da Porto Editora, a Palavra do Ano de 2019 - “Violência [doméstica]”. A violência doméstica continua a ser banalizada. Vemos retrocessos civilizacionais. Comunidade apática. É oportuno recordar Dulce Maria Cardoso, com a obra “Eliete”: “...e ninguém dava conta porque quase nunca se dava conta de nada a não ser quando a realidade nos entrava pelos olhos adentro e, mesmo assim, preferíamos cegar a ver”.
Uma das 35 vítimas do ano passado, no contexto de violência doméstica, morreu perto de minha casa. Também acontece perto da nossa casa. Habitações impregnadas de violência. Respeito ao próximo é zero. Desespero. Loucura. Ódio. Vingança.

Comentário na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (09/01/2020).

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

TEMAS QUE AQUECEM OS DIAS MAIS FRIOS...

A geada chegou em força. Pinceladas de branco predominam nos campos, e quem agradece são as couves. A geada torna-as mais tenras e dá-lhes sabor. Estou certo, Alice Pereira?
Está o caminho aberto para as nossas Couves com Feijões. Qual queijo com marmelada, qual quê! A melhor combinação é couve-galega com feijão amarelo. As carnes de suíno são a cereja no topo do bolo, ou melhor, do cozido. A energia dispara. Cozinhado, ou não, num pote de ferro, é sempre um prato de excelência, que resiste no tempo e vence a gastronomia molecular!
Já os cogumelos silvestres começam a escassear, nas áreas que exploro e, assim, resta-me ir ao congelador e desviar a pescada que está na terceira prateleira. Estou certo que, sob a pescada, e aconchegado por um frango criado no campo da minha sogra, encontrarei os boletos que colhi, no dia 6 de Novembro. Ou seja, estou quase como os esquilos e as bolotas.
Movo o holofote! Nos últimos dias, somos informados que ofereceram um burro a Greta Thunberg, para fazer a viagem de Lisboa a Madrid. É uma ideia original e amiga do ambiente.
Não sei quantos dias são precisos, para completar a viagem, e pouco importa se opta por ir de burro de Lisboa a Badajoz, se, depois, vai de camelo de Badajoz a Madrid, terminando os últimos 100 metros ao pé-coxinho. O que sei é que é uma menina que diz, a alguns dos homens mais poderosos do mundo, o que poucos tiveram coragem de dizer (e tantos já tiveram essa oportunidade...).
Entrar numa espiral de comparar a acção de Greta com a de outros jovens activistas pelo clima, é seguir o mesmo caminho que as ovelhas, quando vão para mato.
Agora, sento-me no sofá, relembro o meu passado e anoto num bloco: nunca tive ligações à maçonaria. Fiz este registo, após o debate entre os três candidatos à liderança do PSD, onde o vencedor foi António Costa, e onde se falou mais da maçonaria do que do futuro do país.
A propósito destas supostas ligações à dita Ordem, gostava que Olga Tokarczuk visitasse Vieira do Minho, depois da ida a Estocolmo, para a cerimónia de entrega dos Prémios Nobel. Sentava-se à mesa e, antes da chegada da refeição principal (oportunidade para uma polaca avaliar as nossas Couves com Feijões), pedia-lhe que dissesse, em voz alta, uma pequena frase que a sua narradora fez referência, no livro “Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos”, e que se torna oportuna: “Gestos de domínio, insígnias de poder”.
Já agora, o mais perto que estive de pertencer ao trabalho maçónico, foi quando me tornei adulto. Passei a reunir, constantemente, à volta da mesa, com amigos, num espaço subterrâneo de 50 metros quadrados, de difícil acesso, razoavelmente iluminado, escassamente ventilado e sem rede móvel...!

Comentário na Rádio Alto Ave, no jornal Geresão e na Cidadania Vieirense (10/12/2019). Fotografia: Tommaso Rada/CAVA.