quinta-feira, 1 de julho de 2021

UMA VIAGEM NO TEMPO PELA VIDA DA "NOSSA" IRENE


Dois dias depois do início da Primavera, parto em direcção a Salamonde. Na viagem, regresso ao passado. Foi cidade (chamada Salveia), no tempo dos romanos, que a atravessavam no percurso de Bracara Augusta (Braga) a Aquae Flaviae (Chaves).

Avanço vários séculos e, deixando a lenda das Fragas de Pena-Má para outro momento de reflexão, são as Invasões Francesas que me levam até onde a crueldade humana é capaz, no que diz respeito à destruição de uma comunidade. Salto, praticamente, 212 anos e encontro Irene Martins Vieira, na Rua de Secarias, sentada numa tábua de pinho, que está apoiada em quatro tijolos, em frente à sua casa.

Bem, boa disposição não faltou, e longas horas de conversa foram precisas para que eu agarrasse a enérgica salamondense. Quando o cicerone local inicia o registo fotográfico, Irene “dispara” de imediato: “Olhe lá, para que é isto?”. Digo eu: “É para elevar as memórias da pessoa idosa”. Aliviei a tensão e sentei-me numa das pontas da tábua, não terminando o encontro sem desequilibrar-me, por duas vezes, quando a “nossa” Irene salta, de repente, para enxotar o gato que tinha entrado em casa.

Nasceu no dia 2 de Novembro de 1936, em Salamonde, a poucos metros do rio Cávado e da barca que viria a comandar.

De uma família que eleva não só a barca, mas também o moinho, devem ser registados os nomes dos progenitores: Alberto Vieira e Clarinda Amélia Martins Varanda. Em relação aos avôs, restam poucas lembranças, mas há um que se destaca - o seu avô paterno, José Vieira. Um grande senhor que ajudou a criá-la e que “entrava no tribunal com chapéu na cabeça”. Granjeando respeito e aspirando longevidade, faleceu a pouco tempo de completar 100 anos.

Irene cresceu a observar o trabalho do pai e do avô José com a barca que atravessava o rio Cávado, ligando o concelho de Vieira do Minho a Montalegre.

Adepta do “antes quebrar que torcer”, foi destemida numa infância que foi “uma borga”. Os seis anos de idade foram marcantes, pois não foi para a escola, aprendeu sozinha a nadar “como uma rã” e começou a assumir o comando da barca, até ao fim da sua utilidade, que foi com a inauguração da Barragem de Salamonde, recordando tantas histórias que a memória não deixa fugir.

Se Gil Vicente, no “Auto da Barca do Inferno”, tinha dois barqueiros, um Anjo e um Diabo que decidiam o destino dos passageiros, em Salamonde, a Irene era a única barqueira e o destino era sempre Fafião, na freguesia de Cabril. Estando do lado de lá, regressava, por vezes, com ocupantes.

A barca, com capacidade máxima para 12 pessoas e dois animais de grande porte, tinha o seguinte preçário: uma pessoa pagava um escudo, por cada viagem, no entanto, se se fizesse acompanhar de dois animais de grande porte, o custo total era de 20 escudos. 

No Inverno, a barca descansava, porque a corrente do rio era forte, mas, quando estava em actividade no resto do ano, não havia um único dia de descanso, incluindo trabalho nocturno, para fazer rolar a mercadoria: sabão, ovos, vinho e azeite atravessavam o rio, para rumar a Espanha. Batiam à porta de casa, às 4 horas da manhã e, se fossem pobres, que era a maioria que o fazia, porque procurava obter algum dinheiro para comer, não pagavam nada pela viagem.

Enquanto recordava que o fluxo de viagens para Salamonde aumentava aquando da Feira da Ladra, salta um acontecimento com risadas à mistura: seis senhoras, que carregavam cestas de estrume, estavam na barca e três desequilibraram-se, caindo ao rio, mas Irene saltou para a água e puxou-as para a barca, mal elas seguiram a sua orientação que foi agarrarem-se umas às outras. O embaraço deu lugar à boa disposição.

A idade avançou até aos 12 anos e, além da barca, Irene e outras crianças juntavam lenha, nas proximidades, depois de os homens cortarem as árvores e iam, também, plantar árvores para a Serradela, na Serra da Cabreira, após 4 horas de caminhada.

Nesta última actividade, iam, ao amanhecer, e vinham de noite, para ganhar, naquela altura, cinco “coroas”. Comiam, às 9 horas da manhã, pão de milho com aguardente e, às 12 horas da manhã, pão de milho com cebola salgada.

Aos 15 anos, surge uma história de amor. A Primavera a espreitar e António veio de Cabeceiras de Basto para trabalhar e namorar. Numa das suas pausas, dirige-se a Irene e, depois de conversarem uma hora, o coração de António fala mais alto: “Se a menina não se importar, gostava de ter um compromisso consigo”. No entanto, Irene não estava na disposição de namorar: “Mas eu não gostava”. António não aguenta a sua frustração: “Você agora é que me tramou. Vim de tão longe de bicicleta!”.

Depois desse diálogo, António não desistiu e, quando já estava a trabalhar no concelho de Terras de Bouro, escreveu-lhe uma carta, onde mostrava que o seu amor não tinha afrouxado. Mas, Irene continuava com a mesma relutância e pede a um cunhado para lhe responder com uma “carta nada simpática”.

Não há duas sem três e António volta a Salamonde, para dizer a Irene que quer “namorar a valer”. Quando Irene diz que não aceita, o que demonstra que perseverança e amor nem sempre jogam na mesma equipa, António ficou desarmado: “Deu-me o maior desgosto da vida”. Bem, no amor, como numa barca, os dois têm de remar na mesma direcção.

A sua juventude foi, de facto, bem vivida, como acontecia quando ia à Feira da Ladra. Uma borga, com concertinas a abrilhantar a Feira, e, com mais 12 pessoas, formavam um rancho, começando a dançar e a cantar:

Salamonde é um jardim,

Toda a gente diz que sim.

É o nome da nossa terra.


Viva Salamonde, jardim das flores!

Viva Salamonde, terra dos nossos amores!

Chega o ano de 1953 e acontece a inauguração da Barragem de Salamonde, que foi, também, fruto do trabalho de homens de Fafe e de Celorico de Basto que ganhavam energia com sopa e conhecimentos com Baltazar Silva, que era Encarregado de Obras.

A barca é, então, encostada. O avô vendeu-a a uma família da aldeia de Sidrós, pertencente ao concelho de Montalegre, e a tristeza desse momento é esquecida, pelos últimos momentos felizes que Irene viveu na barca: à medida que o nível da água da albufeira foi subindo, Irene ia para dentro da barca e, nas margens do rio, conseguia apanhar as cerejas que estavam nos ramos mais altos.

Até casar, no ano de 1954, com Manuel Joaquim Vilela Rodrigues, natural de Rossas, Vieira do Minho, que tinha conhecido quando ele trabalhava na construção da Barragem de Salamonde, Irene trabalhou numa padaria.

O dia do casamento, na Igreja Paroquial de Salamonde, não fugiu muito ao que era habitual, na época. Poucas pessoas presentes na celebração, e, após a saída da Igreja, cozeram pão e foi servido arroz de cabidela, na casa dos pais da noiva.

Manuel Rodrigues continuou envolvido na construção de barragens, e, como a intensidade do amor não permitia uma separação, os dois seguiram, lado a lado, durante vários anos, para a edificação das barragens de Paradela; Pisões e Aguieira, que Irene defende como a “mais linda do país”.

Um objecto que nunca abandonou Irene foi a máquina de tricotar. Fazia camisas e colchas, vendendo, também, à porta da sua casa quando regressava a Salamonde, o que aconteceu, definitivamente, no início da década de 80.

Já na sua terra amada, além de podar a vinha e alimentar as galinhas, apoiava, fervorosamente, o clube local, quando estava a competir. 

A idade foi passando e enfrentou, no ano de 2011, um dos dois momentos mais difíceis da sua vida: a morte do marido. O primeiro momento, arrasador, foi na década de 60, quando rio passou a ser sinónimo de tragédia, com a morte de um dos 12 irmãos, o irmão António.

Venha o momento mais feliz: o nascimento do primeiro filho. Inesquecível! Passou a olhar para o mundo com outros olhos, com amor que transborda e atinge os cinco filhos, oito netos e cinco bisnetos.

Nos dias de hoje, continua com um dinamismo incrível e uma saúde de ferro, relembrando, por vezes, que, antigamente, a vida teve muitos espinhos. Lembra-se da altura em que 14 pessoas viviam na mesma casa, mas há um pensamento que a percorre, ao longo de décadas e motiva-a a continuar a sua caminhada: “Meu Deus Nosso Senhor há-de ajudar-me, porque ajudei muitos”.

Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n'O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (22/05/2021).