quinta-feira, 1 de julho de 2021

UMA VIAGEM NO TEMPO PELA VIDA DA "NOSSA" IRENE


Dois dias depois do início da Primavera, parto em direcção a Salamonde. Na viagem, regresso ao passado. Foi cidade (chamada Salveia), no tempo dos romanos, que a atravessavam no percurso de Bracara Augusta (Braga) a Aquae Flaviae (Chaves).

Avanço vários séculos e, deixando a lenda das Fragas de Pena-Má para outro momento de reflexão, são as Invasões Francesas que me levam até onde a crueldade humana é capaz, no que diz respeito à destruição de uma comunidade. Salto, praticamente, 212 anos e encontro Irene Martins Vieira, na Rua de Secarias, sentada numa tábua de pinho, que está apoiada em quatro tijolos, em frente à sua casa.

Bem, boa disposição não faltou, e longas horas de conversa foram precisas para que eu agarrasse a enérgica salamondense. Quando o cicerone local inicia o registo fotográfico, Irene “dispara” de imediato: “Olhe lá, para que é isto?”. Digo eu: “É para elevar as memórias da pessoa idosa”. Aliviei a tensão e sentei-me numa das pontas da tábua, não terminando o encontro sem desequilibrar-me, por duas vezes, quando a “nossa” Irene salta, de repente, para enxotar o gato que tinha entrado em casa.

Nasceu no dia 2 de Novembro de 1936, em Salamonde, a poucos metros do rio Cávado e da barca que viria a comandar.

De uma família que eleva não só a barca, mas também o moinho, devem ser registados os nomes dos progenitores: Alberto Vieira e Clarinda Amélia Martins Varanda. Em relação aos avôs, restam poucas lembranças, mas há um que se destaca - o seu avô paterno, José Vieira. Um grande senhor que ajudou a criá-la e que “entrava no tribunal com chapéu na cabeça”. Granjeando respeito e aspirando longevidade, faleceu a pouco tempo de completar 100 anos.

Irene cresceu a observar o trabalho do pai e do avô José com a barca que atravessava o rio Cávado, ligando o concelho de Vieira do Minho a Montalegre.

Adepta do “antes quebrar que torcer”, foi destemida numa infância que foi “uma borga”. Os seis anos de idade foram marcantes, pois não foi para a escola, aprendeu sozinha a nadar “como uma rã” e começou a assumir o comando da barca, até ao fim da sua utilidade, que foi com a inauguração da Barragem de Salamonde, recordando tantas histórias que a memória não deixa fugir.

Se Gil Vicente, no “Auto da Barca do Inferno”, tinha dois barqueiros, um Anjo e um Diabo que decidiam o destino dos passageiros, em Salamonde, a Irene era a única barqueira e o destino era sempre Fafião, na freguesia de Cabril. Estando do lado de lá, regressava, por vezes, com ocupantes.

A barca, com capacidade máxima para 12 pessoas e dois animais de grande porte, tinha o seguinte preçário: uma pessoa pagava um escudo, por cada viagem, no entanto, se se fizesse acompanhar de dois animais de grande porte, o custo total era de 20 escudos. 

No Inverno, a barca descansava, porque a corrente do rio era forte, mas, quando estava em actividade no resto do ano, não havia um único dia de descanso, incluindo trabalho nocturno, para fazer rolar a mercadoria: sabão, ovos, vinho e azeite atravessavam o rio, para rumar a Espanha. Batiam à porta de casa, às 4 horas da manhã e, se fossem pobres, que era a maioria que o fazia, porque procurava obter algum dinheiro para comer, não pagavam nada pela viagem.

Enquanto recordava que o fluxo de viagens para Salamonde aumentava aquando da Feira da Ladra, salta um acontecimento com risadas à mistura: seis senhoras, que carregavam cestas de estrume, estavam na barca e três desequilibraram-se, caindo ao rio, mas Irene saltou para a água e puxou-as para a barca, mal elas seguiram a sua orientação que foi agarrarem-se umas às outras. O embaraço deu lugar à boa disposição.

A idade avançou até aos 12 anos e, além da barca, Irene e outras crianças juntavam lenha, nas proximidades, depois de os homens cortarem as árvores e iam, também, plantar árvores para a Serradela, na Serra da Cabreira, após 4 horas de caminhada.

Nesta última actividade, iam, ao amanhecer, e vinham de noite, para ganhar, naquela altura, cinco “coroas”. Comiam, às 9 horas da manhã, pão de milho com aguardente e, às 12 horas da manhã, pão de milho com cebola salgada.

Aos 15 anos, surge uma história de amor. A Primavera a espreitar e António veio de Cabeceiras de Basto para trabalhar e namorar. Numa das suas pausas, dirige-se a Irene e, depois de conversarem uma hora, o coração de António fala mais alto: “Se a menina não se importar, gostava de ter um compromisso consigo”. No entanto, Irene não estava na disposição de namorar: “Mas eu não gostava”. António não aguenta a sua frustração: “Você agora é que me tramou. Vim de tão longe de bicicleta!”.

Depois desse diálogo, António não desistiu e, quando já estava a trabalhar no concelho de Terras de Bouro, escreveu-lhe uma carta, onde mostrava que o seu amor não tinha afrouxado. Mas, Irene continuava com a mesma relutância e pede a um cunhado para lhe responder com uma “carta nada simpática”.

Não há duas sem três e António volta a Salamonde, para dizer a Irene que quer “namorar a valer”. Quando Irene diz que não aceita, o que demonstra que perseverança e amor nem sempre jogam na mesma equipa, António ficou desarmado: “Deu-me o maior desgosto da vida”. Bem, no amor, como numa barca, os dois têm de remar na mesma direcção.

A sua juventude foi, de facto, bem vivida, como acontecia quando ia à Feira da Ladra. Uma borga, com concertinas a abrilhantar a Feira, e, com mais 12 pessoas, formavam um rancho, começando a dançar e a cantar:

Salamonde é um jardim,

Toda a gente diz que sim.

É o nome da nossa terra.


Viva Salamonde, jardim das flores!

Viva Salamonde, terra dos nossos amores!

Chega o ano de 1953 e acontece a inauguração da Barragem de Salamonde, que foi, também, fruto do trabalho de homens de Fafe e de Celorico de Basto que ganhavam energia com sopa e conhecimentos com Baltazar Silva, que era Encarregado de Obras.

A barca é, então, encostada. O avô vendeu-a a uma família da aldeia de Sidrós, pertencente ao concelho de Montalegre, e a tristeza desse momento é esquecida, pelos últimos momentos felizes que Irene viveu na barca: à medida que o nível da água da albufeira foi subindo, Irene ia para dentro da barca e, nas margens do rio, conseguia apanhar as cerejas que estavam nos ramos mais altos.

Até casar, no ano de 1954, com Manuel Joaquim Vilela Rodrigues, natural de Rossas, Vieira do Minho, que tinha conhecido quando ele trabalhava na construção da Barragem de Salamonde, Irene trabalhou numa padaria.

O dia do casamento, na Igreja Paroquial de Salamonde, não fugiu muito ao que era habitual, na época. Poucas pessoas presentes na celebração, e, após a saída da Igreja, cozeram pão e foi servido arroz de cabidela, na casa dos pais da noiva.

Manuel Rodrigues continuou envolvido na construção de barragens, e, como a intensidade do amor não permitia uma separação, os dois seguiram, lado a lado, durante vários anos, para a edificação das barragens de Paradela; Pisões e Aguieira, que Irene defende como a “mais linda do país”.

Um objecto que nunca abandonou Irene foi a máquina de tricotar. Fazia camisas e colchas, vendendo, também, à porta da sua casa quando regressava a Salamonde, o que aconteceu, definitivamente, no início da década de 80.

Já na sua terra amada, além de podar a vinha e alimentar as galinhas, apoiava, fervorosamente, o clube local, quando estava a competir. 

A idade foi passando e enfrentou, no ano de 2011, um dos dois momentos mais difíceis da sua vida: a morte do marido. O primeiro momento, arrasador, foi na década de 60, quando rio passou a ser sinónimo de tragédia, com a morte de um dos 12 irmãos, o irmão António.

Venha o momento mais feliz: o nascimento do primeiro filho. Inesquecível! Passou a olhar para o mundo com outros olhos, com amor que transborda e atinge os cinco filhos, oito netos e cinco bisnetos.

Nos dias de hoje, continua com um dinamismo incrível e uma saúde de ferro, relembrando, por vezes, que, antigamente, a vida teve muitos espinhos. Lembra-se da altura em que 14 pessoas viviam na mesma casa, mas há um pensamento que a percorre, ao longo de décadas e motiva-a a continuar a sua caminhada: “Meu Deus Nosso Senhor há-de ajudar-me, porque ajudei muitos”.

Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n'O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (22/05/2021).

quarta-feira, 24 de março de 2021

VIVÊNCIAS DA TERNA MARIA DA CONCEIÇÃO ESTEVES

As memórias da pessoa idosa conduzem-me a um território que respira, desde a Serra da Cabreira ao Rio Cávado, observando a Serra do Gerês: Ventosa.  

No dia em que foi de cozido à portuguesa, mas sem folia, sou recebido pela ternura de Maria da Conceição Esteves.

Nasceu em Ventosa, mais propriamente no Cartaxo, a 1 de Outubro de 1932, e, se o seu coração nunca abandonou a comunidade que a viu nascer, os pés, raramente, assentaram noutras paragens.

Os 88 anos de idade não beliscam a memória, em relação aos nomes, feitos e momentos incríveis vividos pelos pais: Abílio Joaquim Esteves e Alzira de Lemos. O pai ficou conhecido como um dos melhores tanoeiros da região, onde a perfeição do trabalho não permitia qualquer fuga na pipa, e a mãe viveu um dos grandes acontecimentos, de que há memória, nas margens do Rio Cávado. Alzira tinha cerca de dois anos e, quando brincava no exterior, uma águia agarrou-a pela cabeça e tentou voar, para bem longe. Valeram os berros de Alfredo Soares, que atemorizaram a ave de rapina, e largou a criança, quase de imediato. O susto passou, mas um pequeno buraco na cabeça, devido a uma das garras da águia, perdurou para toda a vida.

Como tantas vivências que alastraram pelos nossos guerreiros, o tempo para brincar, e a vida escolar foram reduzidos. O Jogo da Macaca, e os estudos na Escola Primária de Quintã, que terminaram na terceira classe, deram lugar ao trabalho. Com nove anos, Maria já amassava pão e conduziu-me a um momento inesquecível. Não chegava à masseira e a rasa (sem 11 quilogramas de milho e cerca de quatro quilogramas de centeio e virada ao contrário) servia de degrau. Cumprindo, religiosamente, todos os passos, incluindo a bênção da massa, viam-se as broas de milho a fumegar, mal se abriam as portas do forno.

A idade foi avançando e a adolescência foi um período marcante. Olhando para os acontecimentos, que saltam logo à vista, sou informado de que, enquanto guardava gado, aproveitava para fazer croché. Porém, certo dia, um tropeção fez com que uma ida ao Hospital João da Torre, em Vieira do Minho, com direito a internamento, se tornasse inevitável, dado que uma agulha tinha seguido o caminho de uma das fossas nasais.

Era, também, doloroso quando tinha de abandonar a sua terra Natal, como quando acompanhava os passos do pai até às Minas dos Carris, na Serra do Gerês, onde uma actividade sazonal, designada “rebusco”, no minério, estava à espera dele, durante sete dias.

Iam a pé e demoravam quase um dia, a chegar lá.

Depois do trabalho, tinham à espera uma noite, num dos abrigos dos pastores. Numa habitação em que a carqueja substituía o colchão e as pessoas ficavam deitadas em círculo.

A Maria salta, rapidamente, para as boas lembranças. Não se esquece de o pai a querer motivar a cumprir certas tarefas, ao prometer levá-la, nomeadamente, à Romaria de São Bento da Porta Aberta, mas uma coisa era certa: não existia festa sem a presença do progenitor.

Com 18 anos, casa-se com Daniel Augusto Martins. Uma celebração com dois episódios que prendem a atenção: uma ida a pé até à Igreja Paroquial de Ventosa e um arroz de frango, na casa dos pais do noivo, após o vínculo estabelecido entre Maria e Daniel.

Tinha chegado a altura de o casal partilhar o mesmo espaço, o que acontece no lugar de Paredes, não sem antes terem de retirar a palha que estava no seu interior.

Os proprietários da habitação cederam-na, com a condição de o casal cultivar os campos da quinta e entregar metade das colheitas.

O deslumbramento tinha os dias contados. Passados poucos meses, uma enorme tristeza abata-se sobre o casal, porque Daniel tem de ir à tropa e, como diz Maria, “a vida, nesse período, correu sabe Deus como”.

Esse período negativo esfuma-se, exactamente, 50 anos depois, quando surge o momento mais feliz das suas vidas: as bodas de ouro, em 2001, em que a viagem até à Ilha da Madeira foi a cereja no topo do bolo.

Uma vida adulta a acarinhar os quatro irmãos; a cuidar dos nove filhos e a trabalhar no campo, plantando, entre outros, milho e feijão.

No meio das recordações das idas ao Mosteiro (para o médico Guilherme de Abreu avaliar os filhos), e dos tempos vividos no concelho de Montalegre (quando o marido estava envolvido na construção das barragens de Paradela e dos Pisões), surgem as históricas idas às feiras sonantes, na sede do concelho de Vieira do Minho: Feira Semanal e a Feira da Ladra.

Uma ida a pé, com passagem obrigatória e “abençoada” no Penedo da Santa, e, pouco tempo depois, a magia acontecia. Segunda-feira era como um feriado, pois era o dia de ir à Feira Semanal e, antes de comer, no almoço, Tripas à Moda do Porto, comprava-se, com cem escudos, feijões, fruta...

Já em relação à Feira da Ladra, as compras eram dirigidas para o vestuário e a merenda acompanhava-os, até à hora de jantar. A viagem de regresso à terra de António Sobrinho, primeiro Visconde de Penedo, só se iniciava após o fogo-de-artifício.

Hoje em dia, Maria Esteves não pode deliciar-se com as traquinices dos 12 netos e quatro bisnetos, e relembra quando comeu “o pão que o diabo amassou”.

No entanto, a sua determinação levou-a a vencer e a ser amada. 


Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (8/3/2021).

terça-feira, 2 de março de 2021

PARA A MINHA GLÓRIA...

As vivências da pessoa idosa agasalham as memórias de um povo. Desta vez, mergulhei na história da minha família.

Uma rosa amarela foi a chave da porta de entrada, no mundo de Glória da Conceição Oliveira Carneiro. Um sobrinho, que sou eu e que sempre se sentiu acarinhado como um neto, é informado que, no dia 29 de Dezembro de 1936, em Caniçada, nasceu uma guerreira que diz com mágoa: “Não me deram tempo para brincar. Não me deram escola. Deram trabalho”. 

É uma dos 12 filhos de Deolinda de Jesus Oliveira e Silvino Carneiro, dos quais sete já foram de encontro ao Pai, saltando logo à vista as diferentes sortes das duas irmãs, que tinham diferença de idades, entre elas, de dois anos.

A irmã mais velha, Maria Rosa Oliveira Carneiro, teve uma vida escolar porque cresceu na companhia dos avós paternos - Deolinda e António (naturais de Cabeceiras de Basto, a fertilidade ganha destaque quando registo que o avô António teve 22 irmãos, mas cruza-se com a desgraça, porque apenas três atingiram a idade adulta).

Já Glória, com dois anos, seguiu caminho até aos avós maternos - Rosa e Adelino Clara (rebenta uma curiosidade pelo facto de o avô Adelino ter sido conhecido como “Ervilha”, devido à sua fraca compleição física se assemelhar a uma ervilha). Passado pouco tempo, começou a guardar ovelhas, descalça, debaixo de chuva e em cima de neve, impossibilitada de pôr os pés na escola. Permaneceu em Soengas, mais propriamente no lugar de Várzeas, até aos 12 anos. Nesta fase marcante da sua vida, recorda quase tudo.

Com oito anos, foram fazer papas de milho com ervilhas, debaixo de um penedo de granito. A ausência de um panelo foi resolvida, em São Miguel. Resultou numa refeição maravilhosa, no entanto, o prato que Glória levou, acabou por partir. Os cacos vieram também para casa, onde as pessoas habitavam no piso superior e os animais no piso inferior, e um canal que servia de passagem de comida para a pia do porco foi utilizado para o lançamento dos cacos. Posteriormente, a avó Rosa passou no piso inferior e viu tudo. A aventura deu as mãos à inocência.

Agora, um acontecimento com nove anos. O avô Adelino dizia: “O meu filho António vai com as vacas e a Glória com as ovelhas”. Depois de avançarem para o terreno, para cumprirem as missões que lhes foram atribuídas, António deixou logo bem claro que ia namorar e queria que a sobrinha vigiasse, também, as vacas. Sentindo-se injustiçada, Glória recusou-se e cuidou, “apenas”, das 50 ovelhas. O tio não olhou a meios para mostrar o seu desagrado. Uma vez mais, a justiça caminhou sozinha.

Uma das suas vivências mais marcantes sucedeu, aos dez anos. A avó estava doente, e uma coruja, que pousava, durante a noite, no ramo de uma oliveira situada perto da entrada da casa, cantava, frequentemente. Era sinal de má sorte. Os vizinhos diziam: “Vai morrer a Rosa do Clara”. Numa noite, Glória conseguiu afugentar a coruja ao lançar-lhe pequenos paus, mas a doença da avó não desertou. 

A avó Rosa faleceu, quando Glória tinha 12 anos e, de imediato, veio de encontro aos pais. Viveu, até aos 18 anos, na Quinta das Pereiras, que pertence à Casa da Cuqueira, na proximidade da vila de Vieira do Minho, onde o seu pai estava encarregue de dirigir os trabalhos agrícolas. Era uma propriedade das irmãs Irene, Margarida e Soledade, sempre recheada de afecto, e Glória lembra-se bem, nomeadamente, do grande amor das três irmãs pelo sobrinho Alexandre. 

Infelizmente, o sobrinho faleceu, ainda jovem, e abateu-se um momento de grande consternação, sobre a família. Desde aí, como uma homenagem à sua memória, os afilhados seriam baptizados com o nome Alexandre. Um dos afilhados é o meu pai.

Desde as malandrices habituais dos vizinhos, na noite de São João, como a colocação de pedras até ao meio da cancela, para impedir o seu pai de sair com a carro das vacas, do que mais se recorda na adolescência é de uma ida ao Santuário de Nossa Senhora do Porto de Ave, em Taíde, Póvoa de Lanhoso. Tinha 16 anos e, com a irmã Maria e as vizinhas Mariquinhas e Délinha, foram vender doces tradicionais, com destaque para as cavacas. Foram a pé. Na viagem de ida, Glória parou para descansar só um pouco, mas foi o suficiente para perdê-las de vista. Chorou e chorou, até “ver uma luz ao fundo do túnel”. Venderam tudo na festa, mas cada irmã só recebeu seis escudos. Perante isto, o pai Silvino impediu que voltassem lá no ano seguinte.

Depois dos 18 anos, veio viver para o centro da vila de Vieira do Minho e, aos 20 anos, casou com António Fernandes, conhecido, também, como “Garrafa” (é o que dá brincar, constantemente, com garrafas, na infância).

Trabalhou como Empregada de Limpeza, durante cerca de 30 anos, na Casa do Povo e na Administração Florestal de Vieira do Minho. Extremamente zelosa, encerava tão bem o pavimento de madeira que diziam: “Agora, é um crime pisar este chão”. A saudade diz-lhe para fazer referência aos convívios com os antigos colegas, em que o bacalhau e o vinho tinto abrilhantavam as merendas.

A Igreja Católica acompanha os seus passos. Reza, todos os dias. Se é verdade que é a Igreja Paroquial de Ventosa que mora no seu coração (uma vez que foi lá que se casaram os seus pais; foi crismada; casou um dos filhos e realizou-se o baptismo de dois netos), também é verdade que foi a construção da Igreja de Vieira do Minho que puxou pela sua generosidade e associativismo. O envolvimento de pessoas como Glória e de mais duas amigas, que compraram um banco de madeira por 11 “contos” e ofereceram à Igreja, proporcionaram a realização de um sonho de muitos, que o Padre Abílio Cardoso comandou.

A dor do marido e, igualmente, de um dos filhos terem falecido, tem amparo nos dois filhos, seis netos e três bisnetos que a idolatram.

És um orgulho para mim, porque sei que, quando a vida te dá espinhos, não desistes.

Não te deram escola, é certo, mas respondeste com coragem, trabalho e seriedade.


Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (7/2/2021).

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

ELSA E AS SUAS MÃOS DE FADA

 

Vou continuar a virar-me para o passado, a ouvir a pessoa idosa e a enriquecer a minha vida.

Procuro momentos marcantes da bela Elsa Maria Cruzinha da Silva, que nasceu no dia 1 de Agosto de 1929.

Entro na sua casa, com três rosas cor-de-rosa na mão esquerda e livro e caneta na mão direita. Sou recebido com a amabilidade que sempre a acompanhou, e frisou, de imediato, que nasceu na vila de Vieira do Minho, na Rua Luís de Camões.

Numa infância feliz, onde o Jogo da Macaca e o Jogo de Saltar à Corda estavam presentes, quando a Professora Virgínia não leccionava, é o partilhar de que juntava moedas, ao longo do ano, para participar no Jogo do Ratinho da Sorte, na Feira da Ladra, que mais a emociona.

O silêncio, numa ditadura que amassava, não tirava ânimo à compra de uma rifa, habilitando-se a ganhar brinquedos, louças, tapetes, entre outros.

Agora, seguimos para a Serra da Cabreira com o seu pai, Artur da Silva Cruzinha. No início da década de 1940, os lobos espreitavam e as trutas, que pesavam mais de um quilo, serpenteavam no Rio Ave. De forma habilidosa, os peixes chegavam a ser pescados com as mãos.

Artur foi um mestre pedreiro de coração grande. O Estado, por vezes, demorava a pagar e, quando isso acontecia, adiantava dinheiro do seu bolso, a alguns trabalhadores que necessitavam. Uma coisa era certa: com dinheiro no bolso, acontecia um bailarico.

A destreza dos trabalhadores, e o apoio moral (e gastronómico) da sua esposa, Glória de Jesus Gomes, e também da filha possibilitaram a construção, nomeadamente, da Casa do Guarda Florestal de Agra. A sopa, que era cozinhada num pote de ferro, com carne de porco, couve e feijão, dava energia e afastava os invernos rigorosos que permitiam a construção de bonecos de neve, com cinco metros de altura. E, com a passagem de tantas pessoas para as Minas da Borralha, que foi chão que já deu uvas, estas comidas proporcionavam um rendimento extra.

A Elsa lembra-se bem de quando estavam em Agra: dormiam todos, de segunda-feira a sábado, num salão da casa de Manuel Fernandes, onde uma lareira aquecia o corpo.

No que toca ao aconchego do coração, isso acontecia nas proximidades do Santuário de Nossa Senhora da Orada, no Monte do Calvário, em Pinheiro, quando avistavam a sede do concelho, no regresso a casa.

O tempo avança e a costura entra na sua vida. Se é verdade que a costura surgiu no Paleolítico, também é verdade que continua a ser transmitida, de geração em geração: a Alice Pincães foi a mestra de costura de Elsa e o ensinamento prosseguiu.

A nossa protagonista, também conhecida como “Jéu”, dá um passo relevante, quando começa a trabalhar numa loja de pronto-a-vestir, na vila de Vieira do Minho, após recomendação de pessoas conhecedoras do seu trabalho, ao Moura, o proprietário do estabelecimento comercial.

Os vestidos de noiva da Elsa, com a elegância que um momento único merece, começam, de imediato, a despertar a atenção e o desejo. Assim, surge um acontecimento difícil de resolver: uma noiva quer um vestido igual a um outro que viu, da autoria de Elsa. Com agulha, linha e tecidos, a vontade da noiva é realizada e a amizade, com o meu tio António “Garrafa”, que trabalhava no ateliê de alfaiataria, intensifica-se, ao longo dos anos.

O casamento, no Santuário do Sameiro; o nascimento dos cinco filhos; onze netos e seis bisnetos são momentos que transbordam amor, assim como quando viaja.

Um país que a marcou foi a França, onde se deparou com contrastes: encantou-se com o Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, mas foi para o país de Victor Hugo que o marido, Humberto Custódio da Silva, emigrou.

Não adormece sem rezar o terço e acorda com vontade de cantar músicas sobre Vieira do Minho, que aprendeu na escola, como a intitulada “A minha terra”:

 

Na minha terra virada ao sol

Canta de noite o rouxinol,

Canta contente o passarinho

Que alegra a gente perto do ninho.

 

Eis Vieira terra querida de nós todos

Terra bela no mundo sem igual,

Onde o povo nos seus campos com amor

Canta alegre a canção de Portugal.

 

(…)

 

Obrigado, Elsa!


Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (7/1/2021).