As vivências da pessoa idosa
agasalham as memórias de um povo. Desta vez, mergulhei na história da minha
família.
Uma rosa amarela foi a chave da
porta de entrada, no mundo de Glória da Conceição Oliveira Carneiro. Um
sobrinho, que sou eu e que sempre se sentiu acarinhado como um neto, é
informado que, no dia 29 de Dezembro de 1936, em Caniçada, nasceu uma guerreira
que diz com mágoa: “Não me deram tempo para brincar. Não me deram escola. Deram
trabalho”.
É uma dos 12 filhos de Deolinda
de Jesus Oliveira e Silvino Carneiro, dos quais sete já foram
de encontro ao Pai, saltando logo à vista as diferentes sortes das duas irmãs,
que tinham diferença de idades, entre elas, de dois anos.
A irmã mais velha, Maria Rosa
Oliveira Carneiro, teve uma vida escolar porque cresceu na companhia dos avós
paternos - Deolinda e António (naturais de Cabeceiras de Basto, a fertilidade
ganha destaque quando registo que o avô António teve 22 irmãos, mas cruza-se
com a desgraça, porque apenas três atingiram a idade adulta).
Já Glória, com dois anos,
seguiu caminho até aos avós maternos - Rosa e Adelino Clara (rebenta uma
curiosidade pelo facto de o avô Adelino ter sido conhecido como “Ervilha”,
devido à sua fraca compleição física se assemelhar a uma ervilha). Passado
pouco tempo, começou a guardar ovelhas, descalça, debaixo de chuva e em cima de
neve, impossibilitada de pôr os pés na escola. Permaneceu em Soengas, mais
propriamente no lugar de Várzeas, até aos 12 anos. Nesta fase marcante da sua
vida, recorda quase tudo.
Com oito anos, foram fazer
papas de milho com ervilhas, debaixo de um penedo de granito. A ausência de um
panelo foi resolvida, em São Miguel. Resultou numa refeição maravilhosa, no
entanto, o prato que Glória levou, acabou por partir. Os cacos vieram também
para casa, onde as pessoas habitavam no piso superior e os animais no piso
inferior, e um canal que servia de passagem de comida para a pia do porco foi
utilizado para o lançamento dos cacos. Posteriormente, a avó Rosa passou no
piso inferior e viu tudo. A aventura deu as mãos à inocência.
Agora, um acontecimento com
nove anos. O avô Adelino dizia: “O meu filho António vai com as vacas e a
Glória com as ovelhas”. Depois de avançarem para o terreno, para cumprirem as
missões que lhes foram atribuídas, António deixou logo bem claro que ia namorar
e queria que a sobrinha vigiasse, também, as vacas. Sentindo-se injustiçada, Glória recusou-se e cuidou,
“apenas”, das 50 ovelhas. O tio não olhou a meios para mostrar o seu desagrado.
Uma vez mais, a justiça caminhou sozinha.
Uma das suas vivências mais
marcantes sucedeu, aos dez anos. A avó estava doente, e uma coruja, que
pousava, durante a noite, no ramo de uma oliveira situada perto da entrada da
casa, cantava, frequentemente. Era sinal de má sorte. Os vizinhos diziam: “Vai
morrer a Rosa do Clara”. Numa noite, Glória conseguiu afugentar a coruja ao
lançar-lhe pequenos paus, mas a doença da avó não desertou.
A avó Rosa faleceu, quando
Glória tinha 12 anos e, de imediato, veio de encontro aos pais. Viveu, até aos
18 anos, na Quinta das Pereiras, que pertence à Casa da Cuqueira, na
proximidade da vila de Vieira do Minho, onde o seu pai estava encarregue de
dirigir os trabalhos agrícolas. Era uma propriedade das irmãs Irene, Margarida
e Soledade, sempre recheada de afecto, e Glória lembra-se bem, nomeadamente, do
grande amor das três irmãs pelo sobrinho Alexandre.
Infelizmente, o sobrinho
faleceu, ainda jovem, e abateu-se um momento de grande consternação, sobre a
família. Desde aí, como uma homenagem à sua memória, os afilhados seriam
baptizados com o nome Alexandre. Um dos afilhados é o meu pai.
Desde as malandrices habituais
dos vizinhos, na noite de São João, como a colocação de pedras até ao meio da cancela,
para impedir o seu pai de sair com a carro das vacas, do que mais se recorda na
adolescência é de uma ida ao Santuário de Nossa Senhora do Porto de Ave, em
Taíde, Póvoa de Lanhoso. Tinha 16 anos e, com a irmã Maria e as vizinhas
Mariquinhas e Délinha, foram vender doces tradicionais, com destaque para as
cavacas. Foram a pé. Na viagem de ida, Glória parou para descansar só um pouco,
mas foi o suficiente para perdê-las de vista. Chorou e chorou, até “ver uma luz
ao fundo do túnel”. Venderam tudo na festa, mas cada irmã só recebeu seis
escudos. Perante isto, o pai Silvino impediu que voltassem lá no ano seguinte.
Depois dos 18 anos, veio viver
para o centro da vila de Vieira do Minho e, aos 20 anos, casou com António
Fernandes, conhecido, também, como “Garrafa” (é o que dá brincar,
constantemente, com garrafas, na infância).
Trabalhou como Empregada de
Limpeza, durante cerca de 30 anos, na Casa do Povo e na Administração Florestal
de Vieira do Minho. Extremamente zelosa, encerava tão bem o pavimento de
madeira que diziam: “Agora, é um crime pisar este chão”. A saudade diz-lhe para
fazer referência aos convívios com os antigos colegas, em que o bacalhau e o
vinho tinto abrilhantavam as merendas.
A Igreja Católica acompanha os
seus passos. Reza, todos os dias. Se é verdade que é a Igreja Paroquial de
Ventosa que mora no seu coração (uma vez que foi lá que se casaram os seus
pais; foi crismada; casou um dos filhos e realizou-se o baptismo de dois
netos), também é verdade que foi a construção da Igreja de Vieira do Minho que
puxou pela sua generosidade e associativismo. O envolvimento de pessoas como
Glória e de mais duas amigas, que compraram um banco de madeira por 11 “contos”
e ofereceram à Igreja, proporcionaram a realização de um sonho de muitos, que o
Padre Abílio Cardoso comandou.
A dor do marido e, igualmente,
de um dos filhos terem falecido, tem amparo nos dois filhos, seis netos e três
bisnetos que a idolatram.
És um orgulho para mim, porque
sei que, quando a vida te dá espinhos, não desistes.
Não te deram escola, é certo,
mas respondeste com coragem, trabalho e seriedade.
Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (7/2/2021).