quarta-feira, 24 de março de 2021

VIVÊNCIAS DA TERNA MARIA DA CONCEIÇÃO ESTEVES

As memórias da pessoa idosa conduzem-me a um território que respira, desde a Serra da Cabreira ao Rio Cávado, observando a Serra do Gerês: Ventosa.  

No dia em que foi de cozido à portuguesa, mas sem folia, sou recebido pela ternura de Maria da Conceição Esteves.

Nasceu em Ventosa, mais propriamente no Cartaxo, a 1 de Outubro de 1932, e, se o seu coração nunca abandonou a comunidade que a viu nascer, os pés, raramente, assentaram noutras paragens.

Os 88 anos de idade não beliscam a memória, em relação aos nomes, feitos e momentos incríveis vividos pelos pais: Abílio Joaquim Esteves e Alzira de Lemos. O pai ficou conhecido como um dos melhores tanoeiros da região, onde a perfeição do trabalho não permitia qualquer fuga na pipa, e a mãe viveu um dos grandes acontecimentos, de que há memória, nas margens do Rio Cávado. Alzira tinha cerca de dois anos e, quando brincava no exterior, uma águia agarrou-a pela cabeça e tentou voar, para bem longe. Valeram os berros de Alfredo Soares, que atemorizaram a ave de rapina, e largou a criança, quase de imediato. O susto passou, mas um pequeno buraco na cabeça, devido a uma das garras da águia, perdurou para toda a vida.

Como tantas vivências que alastraram pelos nossos guerreiros, o tempo para brincar, e a vida escolar foram reduzidos. O Jogo da Macaca, e os estudos na Escola Primária de Quintã, que terminaram na terceira classe, deram lugar ao trabalho. Com nove anos, Maria já amassava pão e conduziu-me a um momento inesquecível. Não chegava à masseira e a rasa (sem 11 quilogramas de milho e cerca de quatro quilogramas de centeio e virada ao contrário) servia de degrau. Cumprindo, religiosamente, todos os passos, incluindo a bênção da massa, viam-se as broas de milho a fumegar, mal se abriam as portas do forno.

A idade foi avançando e a adolescência foi um período marcante. Olhando para os acontecimentos, que saltam logo à vista, sou informado de que, enquanto guardava gado, aproveitava para fazer croché. Porém, certo dia, um tropeção fez com que uma ida ao Hospital João da Torre, em Vieira do Minho, com direito a internamento, se tornasse inevitável, dado que uma agulha tinha seguido o caminho de uma das fossas nasais.

Era, também, doloroso quando tinha de abandonar a sua terra Natal, como quando acompanhava os passos do pai até às Minas dos Carris, na Serra do Gerês, onde uma actividade sazonal, designada “rebusco”, no minério, estava à espera dele, durante sete dias.

Iam a pé e demoravam quase um dia, a chegar lá.

Depois do trabalho, tinham à espera uma noite, num dos abrigos dos pastores. Numa habitação em que a carqueja substituía o colchão e as pessoas ficavam deitadas em círculo.

A Maria salta, rapidamente, para as boas lembranças. Não se esquece de o pai a querer motivar a cumprir certas tarefas, ao prometer levá-la, nomeadamente, à Romaria de São Bento da Porta Aberta, mas uma coisa era certa: não existia festa sem a presença do progenitor.

Com 18 anos, casa-se com Daniel Augusto Martins. Uma celebração com dois episódios que prendem a atenção: uma ida a pé até à Igreja Paroquial de Ventosa e um arroz de frango, na casa dos pais do noivo, após o vínculo estabelecido entre Maria e Daniel.

Tinha chegado a altura de o casal partilhar o mesmo espaço, o que acontece no lugar de Paredes, não sem antes terem de retirar a palha que estava no seu interior.

Os proprietários da habitação cederam-na, com a condição de o casal cultivar os campos da quinta e entregar metade das colheitas.

O deslumbramento tinha os dias contados. Passados poucos meses, uma enorme tristeza abata-se sobre o casal, porque Daniel tem de ir à tropa e, como diz Maria, “a vida, nesse período, correu sabe Deus como”.

Esse período negativo esfuma-se, exactamente, 50 anos depois, quando surge o momento mais feliz das suas vidas: as bodas de ouro, em 2001, em que a viagem até à Ilha da Madeira foi a cereja no topo do bolo.

Uma vida adulta a acarinhar os quatro irmãos; a cuidar dos nove filhos e a trabalhar no campo, plantando, entre outros, milho e feijão.

No meio das recordações das idas ao Mosteiro (para o médico Guilherme de Abreu avaliar os filhos), e dos tempos vividos no concelho de Montalegre (quando o marido estava envolvido na construção das barragens de Paradela e dos Pisões), surgem as históricas idas às feiras sonantes, na sede do concelho de Vieira do Minho: Feira Semanal e a Feira da Ladra.

Uma ida a pé, com passagem obrigatória e “abençoada” no Penedo da Santa, e, pouco tempo depois, a magia acontecia. Segunda-feira era como um feriado, pois era o dia de ir à Feira Semanal e, antes de comer, no almoço, Tripas à Moda do Porto, comprava-se, com cem escudos, feijões, fruta...

Já em relação à Feira da Ladra, as compras eram dirigidas para o vestuário e a merenda acompanhava-os, até à hora de jantar. A viagem de regresso à terra de António Sobrinho, primeiro Visconde de Penedo, só se iniciava após o fogo-de-artifício.

Hoje em dia, Maria Esteves não pode deliciar-se com as traquinices dos 12 netos e quatro bisnetos, e relembra quando comeu “o pão que o diabo amassou”.

No entanto, a sua determinação levou-a a vencer e a ser amada. 


Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (8/3/2021).