As memórias da pessoa idosa
conduzem-me a um território que respira, desde a Serra da Cabreira ao Rio
Cávado, observando a Serra do Gerês: Ventosa.
No dia em que foi de cozido à
portuguesa, mas sem folia, sou recebido pela ternura de Maria da Conceição
Esteves.
Nasceu em Ventosa, mais
propriamente no Cartaxo, a 1 de Outubro de 1932, e, se o seu coração nunca
abandonou a comunidade que a viu nascer, os pés, raramente, assentaram noutras
paragens.
Os 88 anos de idade não
beliscam a memória, em relação aos nomes, feitos e momentos incríveis vividos
pelos pais: Abílio Joaquim Esteves e Alzira de Lemos. O pai ficou conhecido
como um dos melhores tanoeiros da região, onde a perfeição do trabalho não
permitia qualquer fuga na pipa, e a mãe viveu um dos grandes acontecimentos, de
que há memória, nas margens do Rio Cávado. Alzira tinha cerca de dois anos e,
quando brincava no exterior, uma águia agarrou-a pela cabeça e tentou voar,
para bem longe. Valeram os berros de Alfredo Soares, que atemorizaram a ave de
rapina, e largou a criança, quase de imediato. O susto passou, mas um pequeno
buraco na cabeça, devido a uma das garras da águia, perdurou para toda a vida.
Como tantas vivências que
alastraram pelos nossos guerreiros, o tempo para brincar, e a vida escolar
foram reduzidos. O Jogo da Macaca, e os estudos na Escola Primária de Quintã,
que terminaram na terceira classe, deram lugar ao trabalho. Com nove anos,
Maria já amassava pão e conduziu-me a um momento inesquecível. Não chegava à
masseira e a rasa (sem 11 quilogramas de milho e cerca de quatro
quilogramas de centeio e virada ao contrário) servia de degrau. Cumprindo,
religiosamente, todos os passos, incluindo a bênção da massa, viam-se as broas
de milho a fumegar, mal se abriam as portas do forno.
A idade foi avançando e a
adolescência foi um período marcante. Olhando para os acontecimentos, que
saltam logo à vista, sou informado de que, enquanto guardava gado, aproveitava
para fazer croché. Porém, certo dia, um tropeção fez com que uma ida ao
Hospital João da Torre, em Vieira do Minho, com direito a internamento, se
tornasse inevitável, dado que uma agulha tinha seguido o caminho de uma das
fossas nasais.
Era, também, doloroso quando
tinha de abandonar a sua terra Natal, como quando acompanhava os passos do pai
até às Minas dos Carris, na Serra do Gerês, onde uma actividade sazonal,
designada “rebusco”, no minério, estava à espera dele, durante sete dias.
Iam a pé e demoravam quase um
dia, a chegar lá.
Depois do trabalho, tinham à
espera uma noite, num dos abrigos dos pastores. Numa habitação em que a
carqueja substituía o colchão e as pessoas ficavam deitadas em círculo.
A Maria salta, rapidamente,
para as boas lembranças. Não se esquece de o pai a querer motivar a cumprir
certas tarefas, ao prometer levá-la, nomeadamente, à Romaria de São Bento da
Porta Aberta, mas uma coisa era certa: não existia festa sem a presença do
progenitor.
Com 18 anos, casa-se com Daniel
Augusto Martins. Uma celebração com dois episódios que prendem a atenção: uma
ida a pé até à Igreja Paroquial de Ventosa e um arroz de frango, na casa dos
pais do noivo, após o vínculo estabelecido entre Maria e Daniel.
Tinha chegado a altura de o
casal partilhar o mesmo espaço, o que acontece no lugar de Paredes, não sem
antes terem de retirar a palha que estava no seu interior.
Os proprietários da habitação
cederam-na, com a condição de o casal cultivar os campos da quinta e entregar
metade das colheitas.
O deslumbramento tinha os dias
contados. Passados poucos meses, uma enorme tristeza abata-se sobre o casal,
porque Daniel tem de ir à tropa e, como diz Maria, “a vida, nesse período,
correu sabe Deus como”.
Esse período negativo
esfuma-se, exactamente, 50 anos depois, quando surge o momento mais feliz das
suas vidas: as bodas de ouro, em 2001, em que a viagem até à Ilha da Madeira
foi a cereja no topo do bolo.
Uma vida adulta a acarinhar os
quatro irmãos; a cuidar dos nove filhos e a trabalhar no campo, plantando,
entre outros, milho e feijão.
No meio das recordações das
idas ao Mosteiro (para o médico Guilherme de Abreu avaliar os filhos), e dos
tempos vividos no concelho de Montalegre (quando o marido estava envolvido na
construção das barragens de Paradela e dos Pisões), surgem as históricas idas
às feiras sonantes, na sede do concelho de Vieira do Minho: Feira Semanal e a
Feira da Ladra.
Uma ida a pé, com passagem
obrigatória e “abençoada” no Penedo da Santa, e, pouco tempo depois, a magia
acontecia. Segunda-feira era como um feriado, pois era o dia de ir à Feira
Semanal e, antes de comer, no almoço, Tripas à Moda do Porto, comprava-se, com
cem escudos, feijões, fruta...
Já em relação à Feira da Ladra,
as compras eram dirigidas para o vestuário e a merenda acompanhava-os, até à
hora de jantar. A viagem de regresso à terra de António Sobrinho, primeiro
Visconde de Penedo, só se iniciava após o fogo-de-artifício.
Hoje em dia, Maria Esteves não
pode deliciar-se com as traquinices dos 12 netos e quatro bisnetos, e relembra
quando comeu “o pão que o diabo amassou”.
No entanto, a sua determinação
levou-a a vencer e a ser amada.
Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave, n`O Jornal de Vieira e na Cidadania Vieirense (8/3/2021).